segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Quem Matou Jô Soares?



“Somos operários das letras
Somos construtores de idéias
palavra por palavra
Mas somos trabalhadores solitários
palavra por palavra
mestres-de-obras da ilusão
Construímos o edifício dos sonhos
sem ajudantes
como se assentássemos a palavra na linha de um verso
e tivéssemos que correr buscar outra
na pilha infindável da solidão
gênios invisíveis
almas esquecidas
antes mesmo de qualquer vagido
das suas vidas perdidas”.

A literatura é uma ocupação solitária.
Como não ter saudade das reuniões que precederam a semana de arte moderna? Ah! Bons tempos de 1922! Eu ainda estava muito longe de nascer, é claro, mas, um dos principais entretenimentos era ler. Complementando: ler livros, ou melhor, ler tudo o que os escritores escreviam. Como não ter saudade! Os bares e seus poetas declamadores, as poesias rabiscadas em pedaços de papéis e os olhos ávidos dos que queriam logo ler. As crônicas, os romances... os grandes rádios chiadores, os folhetins e panfletos... as máquinas de escrever... as máquinas de escrever! Bem, vantagens e desvantagens; quem pode ter saudade delas?
A literatura é uma ocupação solitária e os computadores, quase de uma hora para outra, nos roubaram os últimos aduladores. A internet é um livro interativo constantemente aberto, perfilando romances velozes e diários, constantemente mutáveis. Está cada vez mais difícil encontrar quem nos leia e, na minha roda de amigos, meus assuntos literários conseguem parcos cinco minutos de discussão, logo dissolvidos pela devassidão virtual, muito mais real que meus delírios poéticos. Ou pior, instala-se um silêncio constrangedor, como se todos esperassem por um acidente na esquina, um atropelamento ou coisa assim, para ter como mudar de assunto sem constrangimento.
Nem se deve falar da televisão, inimiga mais antiga e aliciadora cavilosa das mentes incautas, que se deixam obsedar pela facilidade das imagens em movimento e dos sons em aturdimento. Pra que pensar? Pra que imaginar? A televisão já traz tudo pronto! Vá lá, ela tem alguns méritos, mas poucos são literários.
Devo declarar que nada tenho contra o cinema, ao contrário, sempre foi um solidário amigo de todos nós, poetrizes, contrizes, romantrizes, cronizes... que nos vendemos tão fácil por um pouco de atenção, um carinho, mesmo que falso.

“Ainda não tive tempo de ler... você sabe com é, muita correria...”

Sei como é.
Embora a cela que me colocaram ser especial para quem tem curso superior, o cheiro só inspira poemas hepáticos e faz as horas serem lentas e pegajosas. De onde eu tirei “horas pegajosas”? Quem sabe um dia renda um belo poema! Será que alguém ainda acredita que sou inocente?

“Nossa! Teu livro é maravilhoso! Por que você não manda ele para o Jô? Ele devia te entrevistar...”
“Confesso que li só porque você é meu amigo, mas... não imaginava que você escrevia tão bem... Por que você não manda teu livro para o Jô?”
“Você sabia que eu também escrevo...”
“Você poderia me dar o e-mail da tua editora, tenho certeza que vão gostar do meu livro...”
“Eu também faço poesias...”

Será que um dia vão entender que fazer poesia não é o mesmo que ser poeta? Até porque, a poesia já está toda feita, não é preciso que ninguém a faça, apenas a revele. Poetas são os que sabem revelar poesias.
Um dia um amigo me contou que estava numa balada em Porto Alegre, conversando com uma loira bem transada no balcão do bar, quando perguntou o que ela fazia, e ouviu a memorável resposta:
- Di dia eu sou doméstica... di noite eu me didico à poesia...
Essas malditas horas pegajosas me fazem pensar tanto, relembrar, discutir, concluir, e não sair do lugar (é claro!). Como eu iria imaginar que alguém ia fazer isso? Por que fui escrever um livro com esse título? Como eu ia imaginar que logo no dia que fui ao programa...? Será que eu estava sendo seguido?

“nossa editora está com a linha editorial completa para este ano...”
“nossa editora está com a linha editorial completa para este ano e o próximo...”
“nossa editora está com a linha editorial completa para os próximos três anos...”

E ainda tem tanta gente que quer escrever seu livro, contando sua incrível vida, ou sua grande idéia de romance. E tantos vão conseguir e poluir um pouco mais as prateleiras das livrarias... Ah! Essas horas pegajosas estão me deixando cada vez mais amargo, ou azedo, ou os dois. Eu mesmo não fui um dos que poluíram estas prateleiras com uma edição comprada no primeiro livro?
QUEM MATOU JÔ SOARES? Que idéia brilhante! E agora espero minha advogada, que gostou muito dos meus livros anteriores, por sinal. Se ela já tivesse trazido meu note book escreveria um manifesto contra a televisão, a internet, os poetas... mas, quem iria ler? Só se fosse escrito por um conhecedor da Mona Lisa, por algum mago, ou uma socialite... quem sabe uma garota de programa? Quem sabe se eu escrevesse algum verso satânico? Ou então se eu escrevesse um manifesto na forma de auto-ajuda. Ou um manifesto porno-erótico...
Realmente, estou cada vez mais azedo!
- O senhor está preso... tem o direito de permanecer calado... tudo o que disser poderá ser usado no tribunal...
O sonho americano! Nem isso ouvi. Não se faz assim por aqui. Dormi livre e acordei prisioneiro... me tiraram da cama sem explicações. Só fui começar a entender pela tv da delegacia: em meia hora, duas chamadas extraordinárias falando da tentativa de assassinato do apresentador Jô Soares e do seu estado de saúde.
- O senhor é o autor do livro QUEM MATOU JÔ SOARES?
- Sim, sou o autor...
- O senhor esteve na gravação do programa do apresentador Jô Soares de ontem?
- Sim, estive...
- O senhor sabe que sua situação é bastante complicada?
Mostrei ao delegado as algemas do meu pulso. Tive até vontade de falar pra ele que a literatura é uma ocupação solitária, mas atrás dele eu vi os três livros do Jô e logo entendi que a minha situação era bem pior do que eu supunha.
- O senhor gosta dos livros dele? - perguntei, apontando os livros.
Ele ficou me olhando demoradamente antes de responder, como um bom investigador. Eu já havia lido sobre técnicas de investigação algumas vezes, quando escrevia um dos meus livros. Sabia o que ele estava pensando: eu respondera uma pergunta com outra e isso, na linguagem técnica, significava ganhar tempo pra procurar uma evasiva e podia começar a indicar um culpado.
- O senhor está pensando que eu posso ser culpado?
Nossa! Outra pergunta; a essa altura o delegado já deveria ter certeza que era eu, não podia perguntar mais.
- Normalmente eu não leio romances - comentou, reclinando-se na cadeira e colocando os pés sobre o canto da mesa, como se demonstrasse que estava muito seguro da situação, e eu, provavelmente já condenado. - Prefiro os livros técnicos - continuou - principalmente os criminalistas. Vou ler estes, e os seus, inclusive, para me ajudar a resolver este caso.
Realmente, eu estava numa situação muito delicada. Senti que ele esperou que eu fizesse uma nova pergunta, ou que tentasse desviar o curso da conversa. Naquele momento valeu-me também ter lido alguns livros técnicos, por isso falei:
- Respondendo a sua pergunta, gostaria de dizer que nem sei ao certo por que fui trazido aqui, mas não é difícil de perceber que estou numa situação delicada. Por isso, estou a disposição para fornecer todas as informações necessárias e poder ir embora logo.
Um ponto a meu favor, ou contra? O pensamento dele voava em alta velocidade. Investigava-me até a raiz dos cabelos; se pudesse, levantava e cheirava-me.
Pelo que entendi até agora, estou sendo acusado de atentar contra a vida do apresentador Jô Soares - continuei, tentando melhorar minha situação na mente do meu inquisidor.
- O senhor já disse que esteve na gravação do programa dele de ontem...
- Isso mesmo...
- E o senhor é o autor do livro QUEM MATOU JÔ SOARES, no qual relata a vida de um autor pouco conhecido, que resolve escrever um livro em que descreve a tentativa de homicídio deste mesmo apresentador, exclusivamente para promoção pessoal deste autor; ou seja, se aproveitar de uma situação provocada por ele próprio para ganhar notoriedade e... vender livros.
- Fico feliz por saber que o senhor delegado já leu meu livro - comentei sorrindo, o que o deixou bastante confuso. Havia desnorteado um pouco sua linha de raciocínio investigativo. O silêncio dele, enquanto me olhava, era barulhento. Havia levantado enquanto falava, mas agora se aproximava novamente da mesa, apoiava as duas mãos sobre elas, como se fosse um atleta pronto para os 100 metros rasos e me fuzilava com um olhar agudo. Depois de alguns segundos, perguntou, à queima roupa:
- O senhor tentou matar o apresentador Jô Soares?
Eu sabia o quanto era importante a minha resposta e, principalmente, que não podia demorar a dá-la. Tive a impressão que, no mesmo instante que sua última sílaba perdeu-se na atmosfera pesada da sua sala fumarenta, minha resposta explodiu:
- Claro que não!!!
Ele deixou cair a cabeça e ficou em silêncio. Parece que se escondeu de mim. Virou de costas e chamou um assistente para que me levasse ao meu destino fétido. Uma cama de ferro. Um banheiro com pia, chuveiro e patente, mas sem papel higiênico. Um sol se pondo. Uma frase escrita na parede, na cabeceira da cama: aqui ta muito melhor que lá fora!
Eu havia estado na gravação do programa na esperança de poder dar meu livro ao Jô. Pensava que o título poderia atraí-lo. Mas fiquei travado, o tempo todo. Ele chegou a vir perto, virei o livro pra ele, pensando que ele poderia ler e perguntar o que era. Seria tão mais fácil! Tenho certeza que ele olhou para o livro, mas não deve ter lido o título. É claro que não leu! Ficaria interessado, com certeza!
Naquele programa um Ministro da República, que ganhou dois blocos, falando de coisas que nunca aconteceram na política, como tráfico de influência e corrupção. Que chance o meu livro teria? Outro assunto novo na abertura: reinventaram o futebol... descobriram que o árbitro é ladrão! Que chance meu livro teria, diante de assuntos tão atuais e surpreendentes? Além do Ministro, uma modelo famosa. Que mais? O pior é que ela pensa em escrever um livro.
Minha advogada chegou quando começava a escurecer. Sentou na minha frente, esperou que o comissário saísse e perguntou, baixo:
- Você fez isso?
- Eu ainda nem sei direito do que estão me acusando...
- Aconteceu exatamente como está no seu livro... e você estava lá...
Como eu poderia imaginar que algum maluco ia ler meu livro e fazer o que ta escrito?
- Vai ser difícil convencer alguém disso.
- Eu não fiz nada... ou melhor, estou descobrindo que fiz, escrevi um roteiro para um crime... por falar nisso, como está o Jô?
- Como no livro... sobreviveu ao tranqüilizante... como você sabia quanto usar?
- Ele disse o peso numa entrevista, faz algum tempo. Calculei a quantidade suficiente para dopar um mamífero de peso equivalente... hei! Não me olhe assim! Isso não é uma confissão... estou falando sobre o livro... isso tá bem descrito no livro!
- Por que você levantou e saiu do programa antes de terminar?
Demorei a responder. Realmente não era uma resposta fácil e sabia que essa pergunta viria logo. Era perigoso tentar inventar, melhor falar a verdade:
- Precisava ir ao banheiro... estava com dor de barriga.
- O quê? E por que tinha que sair, não podia ir ao banheiro lá mesmo?
- Olha aqui, você é minha advogada faz tempo, mas isso não quer dizer que me conheça na intimidade. Eu não consigo fazer nada em banheiros públicos... mal um xixizinho. O que posso fazer se me deu cólica? Além do mais, naquela situação iam ter que interditar o banheiro depois... ia ser um vexame... acho que foi de nervosismo...
Ela me olhou significativamente. Era pior que o delegado, que não fez mais perguntas por ainda não estar totalmente informado sobre os detalhes. Ela estava.
- Se você não acredita em mim, melhor me indicar outra pessoa. Preciso de alguém que acredite na minha inocência. Preciso de alguém que me conte o que aconteceu de verdade. Invadiram minha casa e me carregaram; tive que passar por um batalhão de repórteres enlouquecidos; enfrentei um delegado metido a Sherlock; passei a tarde numa cama dura de uma cela fedida... e ainda não sei bem o que aconteceu. Você pode me contar?
- As câmaras mostraram quase tudo. Passamos a tarde assistindo as gravações. Quase o tempo todo você olhava para as câmaras, não se importava com o apresentador, como se estivesse estudando seus movimentos e seqüências. De repente levantou e saiu. Quase no mesmo instante um encapuzado vestindo uma longa túnica preta, que escondia todo o corpo, aparece na frente do apresentador e dispara... no lugar onde você estava encontraram seu livro... seu livro que descreve o crime, exatamente como aconteceu. Está nítido que foi premeditado.
- Mas, e a segurança? Como iam deixar passar um cara armado?
- Você ensinou com perfeição como fazer isso...
- A muleta de tubos de metal disfarçando uma arma?... mas isso prova minha inocência. Entrei lá andando sem muleta...
- Também queremos saber como fez isso...
- Eu não fiz isso!!
- Sua casa já foi toda revirada... realmente, não encontraram nenhuma pista... estão pedindo quebra de sigilo telefônico... levaram também teu micro... e vão fazer uma devassa nos teus e-mails... Ainda estão estudando as gravações, invertendo ângulos, fazendo aumentos e filtrando, melhorando a qualidade pra tentar encontrar algum detalhe que possa identificar o culpado.
- ...exatamente como descrevi no livro. O que mais aconteceu? Qual outra semelhança?
- Quatro editoras me ligaram hoje...
- Como assim? - Perguntei quando vi que ela não ia completar.
- Querem os direitos de publicação, para as futuras edições.
Eu sabia que não podia fazer aquela pergunta, mas meus olhos me delatavam. Por isso ela completou:
- Pagam bem mais do que você imagina. Bem mais do que você imaginou no livro. Emissoras de tv, revistas, jornais... querem comprar os direitos de uma entrevista exclusiva... tem um batalhão de repórteres lá fora... Seu plano tá dando certo.
Não repliquei, apenas a olhei com desaprovação, depois perguntei:
- Você vai me defender?
- Podemos alegar psicose...
- Inocência... e nada mais!
- Como no livro... exatamente como no livro...
- E você quer que eu diga que sou culpado por causa disso? Só pra ser diferente do livro? Nunca!! E foram cinco editoras que procuram o personagem do livro – reclamei, como se estivesse magoado.
Ela levantou para sair, sorriu para mim e falou:
- Seja como for, o caso é meu. Ou você acha que eu também não quero ficar famosa?...
- Precisa acreditar em mim.
- Você vai ter que me provar que está falando a verdade. Não esqueça que tudo, mas tudo mesmo, depõe contra você... e antes que você me pergunte, seu note book também está com a polícia.
- Quanto tempo vou ter que ficar aqui?
- Se eu me sair bem, uns cinco anos... como no livro, não lembra?
- Pare de gracinhas! Estou perguntando agora, não vou ter um habeas-corpus?
- Vou ver o que posso fazer, mas não espere muito.
Não aceitaram me entregar o note book, mas o delegado permitiu uma televisão. Sei o que ele pretendia: que eu assistisse os jornais. Eu era o principal assunto e na opinião geral eu era culpado. Numa chamada para um dos jornais noturnos a manchete era:
“HOMEM QUE TENTOU MATAR JÔ SOARES” AINDA NÃO DEU
DECLARAÇÕES À IMPRENSA
Já haviam me julgado, só faltava sair a condenação. A situação piorou muito perante a imprensa quando encontraram o capuz e a bengala num lixão perto da minha casa. Fui levado novamente ao delegado que, mais uma vez à queima roupa, falou:
- Não acredito que você fosse tão imbecil de se livrar das provas perto da tua casa...
- Isso apenas prova que alguém leu o meu livro e está fazendo como escrevi, pensando em me incriminar... eu seria um louco se fizesse isso. É claro que a culpa cairia em mim...
- Por que você escreveu esse livro?
Confesso que a pergunta foi inesperada. Ele estava mais solto, não me chamava mais de senhor e percebi que estava mesmo em dúvida. Apesar de saber que era perigoso, respondi com outra pergunta:
- O senhor sabia que a literatura é uma profissão solitária?
Ele não me respondeu, como eu esperava. Ficou me olhando, demoradamente, como eu esperava. Um minuto depois (uma eternidade se condensa num minuto com esse) ele abaixou os olhos e abriu sua gaveta, tirou uma pasta e, de dentro dela, um maço de papéis, depois falou, como eu jamais esperava:
- Esse é o meu terceiro livro. Ainda não publiquei nenhum...
Fiquei mudo. E se ele pedisse para eu ler e dar uma opinião? Fiquei totalmente mudo.
- ... mas jamais faria o que você fez para me promover.
O que ele queria dizer com aquilo? Estava falando sobre escrever um livro com segundas intenções, ou considerando que eu havia atirado no Jô? Precisava pensar na resposta, e rápido.
- Antes mesmo de tudo isso já havia me arrependido de ter escrito esse livro... mas o senhor não imagina quantas pessoas falaram que eu deveria mandar meus livros anteriores para o Jô... mesmo assim eu não devia. Sinto-me um traidor dos meus próprios princípios...
- Todos nós temos nossos vacilos... embora eu não concorde.
- Ao menos quem leu gostou...
- Sim, isso é bom, sempre é bom, apesar de tudo...
Ele estava solidário a mim. O que eu fazia agora: continuava no assunto do Jô, na ética literária, ou perguntava sobre seus livros? Era arriscado, mas era minha pele que estava em jogo e não podia deixar de contar com um aliado como esse. Arrisquei:
- Sobre o que o senhor escreve em seus livros?
- Não gosto muito de falar sobre o que escrevo... mas, como você vai ter tempo, vou deixar esses rascunhos com você... leia e me dê sua opinião.
Essas malditas horas pegajosas! O pior filme japonês da sessão da tarde era melhor, muito melhor, que o PENSAMENTOS SOBRE UM CRIME, do meu solitário companheiro das letras. E agora, em que encrenca fui me meter! Se eu falo a verdade, apodreço na cadeia. Se minto, vou ter que ler os outros dois. O que é pior?
Embora eu soubesse que vender a exclusividade da entrevista fosse uma ação perigosa, por ser como escrevi no livro, quando soube os valores que estavam oferecendo, não tive outra saída senão a que a cobiça me oferecia: aceitei a maior proposta.
Passei a tarde falando da minha vida, dos meus livros, das dificuldades de ser um autor não alcançado pela sorte. Falei muito sobre a dor que é saber que tem um bom trabalho escrito e ver tanta auto-ajuda nas prateleiras, tantos livros chatos vendendo, tantas celebridades turbinadas pela mídia fazendo sucesso literário, mesmo que por pouco tempo. Mas é claro que o que mais falei foi sobre QUEM MATOU JÔ SOARES, e respondi várias vezes, de diversas maneiras, que era inocente, que algum lunático havia lido o livro e resolveu fazer uma loucura. Fiquei com a sensação que não consegui convencer:
Depois que saíram, o delegado entrou. Sentou na minha frente e ficou me olhando. Eu sabia o que ele queria, era agora. Respirei fundo e apanhei o PENSAMENTOS SOBRE UM CRIME que estava na cabeceira do meu catre, depois sentei na frente dele, numa das cadeiras que foram colocadas para a entrevista. Foi impossível não pensar na inversão dos fatos: parecia que era ele que aguardava uma sentença de culpado ou inocente. Pensando nisso falei, olhando bem nos seus olhos:
- Culpado.
Seus olhos ficaram ariscos e dava pra ver seu pensamento correndo por todas as salas da inteligência, buscando informações para decifrar minha sentença. Ele não era fraco, entendeu o que eu quis dizer, diante da situação. Levantou e foi até a grade, apoiando as mãos sobre ela. Parecia estar perdido em pensamentos profundos. Sem virar-se, falou:
- Então... seria um crime publicar uma obra dessas?
- Um crime contra a literatura, como tantos outros...
Ele voltou a sentar na minha frente, apanhou seus originais do meu colo e esticou-se para trás na cadeira. Achei estranho, não parecia estar ofendido, mas sim satisfeito. Arrumou a arma que trazia presa ao corpo pelas tiras, quase nas costas, acomodou-se melhor na cadeira e falou:
- Não acredito que tenha sido você.
- Eu tenho certeza que não fui eu, mas... não era sobre isso que estávamos falando.
- Era sim. Mesmo sabendo que sua opinião poderia gerar uma antipatia comigo, não conseguiu mentir. O amor à arte foi mais forte. Você não seria capaz de executar o que escreveu em seu livro, apenas para se promover... seu livro é muito bom, por sinal...
- ... obrigado...
- ... se tentasse dizer que essa obra é boa, tentasse me enrolar... – falou, quase que para si mesmo. Depois ficou mais um tempo em silêncio, investigando mentalmente. Finalmente me olhou e completou: - Esse livro não é meu, não fui eu que escrevi. Recebi de um amigo que escreve e me pediu para avaliar... é péssimo! Nem sei como falo isso pra ele. Tive a idéia de entregar a você para medir sua capacidade de mentir. Parabéns! Você não é capaz de passar por cima da literatura pelos seus interesses.
Eu estava aturdido. Ele não era fraco. Era observador, realmente perspicaz.
- Você também é escritor? – perguntei.
- Por que está perguntando isso?
- Respondeu com outra pergunta... então é!
Ele riu da observação. Já éramos amigos, e o risco de eu ter que ler o que ele escrevia era óbvio. Na verdade eu estava até curioso. Não teve tempo de falar mais nada; um comissário apareceu e o chamou, parecendo ter pressa. Meia hora depois ele voltou, e com ele a minha advogada.
- Consegui teu habeas-corpus... você vai responder o processo em liberdade.
- Ora, ao menos uma boa notícia. Juro que pensei que não sairia mais daqui.
- Os técnicos encontraram um álibi forte nas gravações... filtraram e melhoraram as imagens e aparece um detalhe que você não previu no seu livro - completou com um sorriso. - Num aumento de imagem, num rápido movimento da túnica que escorrega até mostrar dois dedos, aparece um anel com uma pedra vermelha no dedo anular da mão direita. Nas imagens que mostram você, sua mão está limpa, sem nenhum anel. É claro que não é o suficiente, mas é um forte argumento...
- ... você poderia estar levando o anel no bolso - continuou o delegado - e ter feito isso de propósito, para criar um álibi. No entanto, nas imagens ficou bem claro que o aparecimento do anel foi acidental... não seria possível fazer aquele movimento com tanta precisão.
Alguns dias depois, hospedado num ótimo hotel para tentar fugir do cerco dos repórteres, já perto da meia noite, o telefone tocou. Era da recepção:
- Senhor... desculpe-me incomodá-lo, mas tenho uma encomenda urgente para o senhor. Posso mandar que entreguem?
Era um grande envelope e, dentro dele o ABSURDA MELODIA, do meu amigo delegado e, junto com ele, uma carta, ou um bilhete:
“ Espero que não interprete isso como uma tentativa de me aproveitar do seu atual sucesso. Afinal, você se transformou numa celebridade! Estou mandando esse original apenas por que gostei realmente do seu livro e, principalmente, por ter certeza que dirá a verdade sobre ele”.
ABSURDA MELODIA! Jamais esperaria um título assim vindo de um delegado. Ora, que preconceito! Os delegados também amam... e escrevem livros, como todo ser humano normal.
Da sacada do apartamento do hotel dava pra ver boa parte do centro da cidade. O hotel era caro, mas só o dinheiro da entrevista exclusiva já bancava, além de eu estar sendo procurado por tudo que é tipo de mídia. Eu não me iludia quanto ao interesse: não era por eu ser escritor, era apenas por um lapso de sorte. Também não me iludia pensando que o esgotamento rápido dos meus primeiros livros era somente pela qualidade deles.
Minha advogada, que logo virou minha empresária, fechou contrato com uma grande editora, com uma margem de lucro por exemplar acima da média. Fui contratado para escrever para um jornal famoso e a minha nova editora me tratava como um rei, para quem a linha editorial estava definitivamente aberta, por muitos anos. A grana que me propuseram para escrever a continuação do QUEM MATOU JÔ SOARES superava todas as minhas expectativas, bem acima do que eu havia escrito no livro.
Lá embaixo, nas ruas, centenas de escritores sem chance, frustrados, sufocados pelo negro e pesado manto do desinteresse geral pela literatura. Entre eles meu querido amigo delegado, que escrevia muito bem, por sinal. Levei seu ótimo ABSURDA MELODIA para a editora e até me propus a fazer a introdução, ou aparecer na capa se fosse preciso, mas a resposta foi curta, e grossa:
- Esse é o seu momento, não o dele!
Creio que o editor chefe não poderia ter resumido tão perfeitamente qual o interesse principal do mundo de negócios literários. Se as grandes editoras se prestassem a publicar um livro de um autor desconhecido de boa qualidade, a cada vinte de autores consagrados, as prateleiras das livrarias seriam muito mais ricas, muito menos poluídas. Mas, agora, ora... isso é problemas deles, os autores desconhecidos! Já não basta receber dezenas de pedidos semanais para avaliar originais?! Já não basta os montes de livros que chegam na minha casa, onde raramente apareço, vindos de todos os lados do Brasil?! Ora... será que querem que eu mande eles para o Jô?
Passado dois meses do incidente uma nova surpresa: a assessoria do Jô me ligou dizendo que me queriam no programa. Confesso que quase chorei. O passado se misturou com o presente de uma forma brusca e me causou estranheza: era como se fosse água e óleo tentando ter alguma afinidade.
Ganhei dois blocos no programa e, apesar das tantas brincadeiras, que eram inevitáveis (me fizeram até vestir uma túnica e um capuz), a minha maior felicidade foi quando me aplaudiram por criticar a situação da literatura no sistema de ensino regular: afinal, querer que um jovem adolescente se cative pela literatura lendo Machado de Assis, José Lins do Rego, Euclides da Cunha, Raul Pompéia, entre outros grandes escritores, por mais que sejam grandes, geniais, é matar a vontade enquanto ela ainda é broto.São autores de um outro tempo, que o leitor jovem tem que amadurecer, criar mais raízes, encorpar, pra poder gostar. Há uma vasta literatura moderna que seria a rega perfeita pra essas mentes incipientes, fartamente suscetíveis aos encantos da internet, do Ragnarok (um jogo baixado pela internet), dos modernos fliperamas... como querer que um jovem troque um orkut por um Machado de Assis?
Tenho certeza que a boa reação da platéia no fim da entrevista foi principalmente por causa disso. É claro que também me emocionei quando o Jô disse que gostou muito dos “meus” livros (até havia lido os outros). Disse que leu QUEM MATOU JÔ SOARES enquanto ainda estava de cama, depois do atentado.
Houve uma grande pressão da vontade pública sobre o meu julgamento. A minha inocência se transformara numa necessidade nacional, em prol dos ídolos e dos bons costumes, e isso tudo me fazia cada vez mais rico, obviamente.
Em pouco tempo eu já selecionava a mídia onde ia aparecer. Idos tempos de se agarrar à notinhas de rodapé. Mas o melhor mesmo da fama foi poder trazer a Luiza e o Lucas pra passar as férias comigo. Moravam com a mãe nos Estados Unidos e antes a grana não permitia isso. Agora é troco. A literatura não é mais uma profissão solitária... e o meu amigo delegado publicou seu livro. Por debaixo dos panos eu fiz contato com uma editora pequena e ele tá muito feliz, embora o ABSURDA MELODIA não esteja vendendo quase nada.
- Você podia tentar matar o presidente... depois escrever um livro...
Senti que ele ficou preocupado com a minha idéia ao telefone, principalmente pelo comentário que fez:
- ... ou escrever um livro sobre isso antes... e depois tentar...
Meu amigo delegado tinha uma mente brilhante e um raciocínio rápido, mas eu era inocente, não havia porque me preocupar. Mesmo que nunca tivessem encontrado mais nenhuma pista do verdadeiro criminoso.
Descemos para o litoral no fim de semana, eu, Lucas de quatorze anos e Luiza, de dez. Íamos ficar uns dias em Ilha Bela e depois seguiríamos para Paraty, onde, no fim de semana seguinte, aconteceria a Festa Literária de Paraty e eu era um dos convidados.
Será que a literatura é mesmo uma profissão solitária?

***

- Lucas, você não devia fazer isso! Papai não gosta nem que a gente use o note book e você vai desmontar ele...
- Não se preocupe, monto igualzinho antes dele voltar... eu nunca desmontei um desses...
- ... se ele descobre vai ficar maluco com a gente...
- Hei! Olha só o que achei aqui...
- Nossa! Que pedra linda! Mas, como é que um anel desses foi parar aí dentro?