segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

CIRURGIÃO DENTISTA AMEAÇA A SEGURANÇA NACIONAL





Esta minha vida dividida entre literatura e odontologia me posiciona, muitas vezes, num meio termo entre o avoamento e os horários marcados. E neste espaço insólito me ocorrem situações tantas vezes recriminadas pelos perfeccionistas do tempo (que felizmente existem na luta contra o caos). Hoje pela manhã, 02 de fevereiro de 2009, segunda-feira, voltei do apartamento da praia da família da minha esposa, com ela e no carro dela, e esqueci a chave do meu carro lá (em Canasvieiras). Sei que muitos me olhariam de canto de olho e sobrancelha arqueada, mas...
Felizmente minha sogra ainda não tinha saído da praia e combinamos que eu esperaria na frente do prédio, onde ela obrigatoriamente passaria e, rapidamente, eu pegaria a chave. Horário: 10:45h. Local: Rua Bocaiúva. Temperatura: na casa dos 30°. De um lado da rua estreita, sol, do outro, sombra. Posso ser esquecido, mas não burro (ao menos acho que não), então esperei do outro lado, onde, por sinal, poderia ver melhor o carro dela chegando, para evitar o menor transtorno ao trânsito possível, se isso é realmente possível na rua Bocaiúva. Não me ocorreu nenhuma preocupação o fato de o “outro lado da rua” ser a calçada e o muro da Brigado do Supremo Exército Brasileiro, muito pelo contrário, senti-me amplamente protegido pelo respeito das fardas verdes que por ali transitam. Porém, para minha surpresa, cerca de 5 minutos depois de eu estar ali parado, na sombra, fui abordado por um soldado plenamente armado, do outro lado do muro, e aconteceu o seguinte brusco diálogo:
- Posso saber o que o senhor faz aí parado?
- Estou esperando minha sogra passar de carro para me entregar uma chave – respondi, achando naturalmente razoável minha explicação.
- O senhor não pode permanecer aí parado.
- Mas eu estou numa rua pública...
- O senhor está numa área militar... e aí o senhor não pode ficar parado.
- Mas, meu amigo, eu moro aqui na frente, sou dentista (creio que fiz bem em esconder minha faceta de escritor, uma vaga reminiscência passou arrepiando a pele da memória), pago meus impostos em dia e não vou permanecer parado aqui por mais de cinco minutos... do outro lado tem sol (entenda-se que do outro lado não é mais que 5 metros).
- Senhor, meu pai também é dentista, e eu estou apenas cumprindo ordens superiores. Aí onde o senhor está só é permitido passar caminhando. O senhor não pode ficar aí parado.
Achei curioso ele me informar que o pai dele também era dentista, mas só diante do inusitado da informação, pois dentista quase toda família tem um, ou alguns, hoje em dia. Também achei interessante ele se referir tanto ao fato de eu ficar parado, por isso perguntei:
- Ah! Então se eu estiver caminhando eu posso esperar minha sogra?
- Sim senhor. Caminhando pode.
- Não vou ser baleado por uma atitude insubmissa?
- Não, senhor.
Os próximos 5 minutos, ou um pouco mais (minha sogra é bastante cuidadosa no trânsito), passei caminhando lentamente, muito lentamente, na frente da brigada e tentando controlar aqueles ímpetos anárquicos que somente piorariam a situação. É claro que divaguei livremente, ao menos divagar se pode fazer andando ou parado, sobre um fato que eu não sabia sobre a nossa soberana democracia, tão bem protegida pelo exército brasileiro:
“temos liberdade constitucional de ir e vir... mas talvez não de ficar”
Na verdade, não quero discutir se eu tinha ou não direito de ficar ali parado (afinal, poderia ser um terrorista disfarçado de dentista bonzinho). Estou querendo é continuar refletindo, como naqueles tensos minutos em que eu andava lentamente, ao abrigo fresco das árvores que crescem além dos muros da brigada da rua Bocaiúva.
O episódio tem seu lado cômico, porém, muito mais profundo e perturbador é o seu lado trágico, e que me leva a perguntar: pra que serve o exército brasileiro? Não, esperem, não me venham com respostas prontas, pois as respostas prontas sempre só servem por um determinado período de tempo, depois caem, por que tudo muda o tempo todo. As sociedades mudam. O que eu quero saber é: pra que o exército brasileiro está servindo hoje, neste ano da graça de 2009, durante um regime democrático que tem manifestações que impressionam o mundo, e cacoetes da ditadura que chafurdam no atoleiro dos direitos humanos desprezados?
Se nem o grande patrimônio brasileiro, cobiçado por todos os países que eternamente invejam o nosso berço esplêndido, que é a Amazônia, não temos nem contingência, nem inteligência, suficiente para manter a salvaguardo dos interesses internacionais, em prol da nossa soberania, eu pergunto: pra que serve?
Fronteiras vazadas por drogas e armamentos. Centenas de ONGs internacionais surrupiando nossas riquezas e patenteando as heranças de Cabral. Então?
Daí eu vejo o índice de criminalidade, a marginalidade intumescida das grandes cidades, a baixa escolaridade, adolescentes com uma vida inútil de até 22 anos. Culpa de quem? É claro que a culpa é dos políticos, mas não é deles que estou refletindo aqui, até porque, se eu apresentasse esse problema ao famoso gênio da lâmpada, rapidamente ele falaria - o que é mesmo que você gostaria de fazer com o exército?
Então a culpa é do exército (e da marinha, e da aeronáutica, é óbvio).
Eu não tenho a menor dúvida que a única primeira medida de solução para os grandes problemas sociais brasileiros, é construir escolas e possibilitar o acesso à escola a toda população. Vejam bem: primeira medida. É claro que isso não dá voto, mas estamos falando em solução e não em tapeação.
Se o exército está vivendo de inércia e de abordar cirurgiões dentistas parados na frente de suas brigadas, por que não se investir em escolas militares gratuitas, que comecem a instrução desde a infância e ofereçam possibilidade de carreira?
Loucura? Loucura é o caminho que estamos indo, tentando nos desviar de balas perdidas, rios que transbordam e morros que caem. Podem argumentar que não seria possível devido aos custos. Mas quanto custa um detento aos cofres públicos? E um baleado num hospital público (coitado!)? E tantas outras despesas que pagamos para sustentar o caos, que só interessa a quem quer manter o povo alienado e sem tempo para refletir. Por sinal, vocês já perceberam que, normalmente, quem mais trabalha é quem mais teria condições de mudar a sociedade. É mais uma coisa pra se pensar.
Também podem falar que não é tradição, nem obrigação do exército essa medida. E daí? Quais as tradições brasileiras que têm trazido algum benefício social consistente? Imaginem o grande contingente humano encontrando, na defesa da pátria (e não estou falando em guerras), uma nova oportunidade social, desde as fronteiras até os profundos sertões do país, onde ainda se troca um voto por uma cesta básica ou algum medicamento de emergência. Desde o CINDACTA até a prevenção de enchentes e deslizamentos.

Você não ficaria feliz por saber que o seu dinheiro de impostos está tirando o bandido da rua antes que ele se torne bandido? Que o seu dinheiro está transformando um futuro marginal num cidadão com qualidade de vida e que vai lutar para melhorar a nossa qualidade de vida?
Por que não?
Como? Não é o exército que pode decidir sobre isso? Precisaria mudar a constituição? Ah! Precisaria dos políticos... Huumm, entendo... o gênio da lâmpada não vai topar essa. Pôxa, e pensar que eles se elegem com nossos votos...