domingo, 25 de maio de 2008

aceito judeus, pretos e homossexuais, mas...


Eu tive a oportunidade de ter dois contos que estão aqui no blog, publicados pelo jornal O LIBERAL, de Cabo Verde. Foi A Luz do Quinto Andar e Ah! Mariana... e, pelo que eu soube, ambos, pela linha mais picante, geraram paixões e ódios. Segundo o que me informaram, eu seria avaliado por uma sociedade conservadora. Acabei não me antendo aos comentários na época, porém agora, mais de um ano depois, acabei lendo um deles e estou repassando-o na íntegra logo abaixo.


É claro que respeito a opinião de quem o faz, mas achei interessante divulgá-lo, para mostrar uma vez mais que realmente vivemos num mundo onde o preconceito não tem mesmo fronteiras.


Aí vai...


Olà! Amigo.
em primeiro lugar quero parabenizá-lo pelo estilo, muito bom.Mas sinceramente não entendo porque ,tentam levar a sociedade que as anormalidades do sexo desregrado, é NORMAL.È só assistir as novelas da globo.
Sabemos que Deus criou o homem para a mulher,para que sua criação criada a sua semelhança pudesse perpetuar a espécie, logo para uma mente de razoável inteligência percebe de imediato, que as relações HOMO, são desequilíbrios emocionais, onde o instinto prevalece,estando ainda longe o burilamento das sensações, retrato aqui e quero deixar bem claro ,que podemos encontrar pessoas HOMO, com elevado desenvolvimento intelelectual, mas esses irmãos, e destaque na sociedade, mas a nível de burilamento do instinto ainda estão longe,mas sei que um dia eles irão alcançar o tão esperado EQUILÌBRIO SEXUAL,pode levar milênios, mas um dia alcançaram,pois DEUS o nosso criador é misericordioso e infinitamente bondoso co todos nós.
Aceito as diferenças, de cor de raça, de sexo e de opção sexual de todos,porque sei que todos nós estamos em crescimento, e sei que cada vida é uma aprendizado.sei que nossos irmãos HOMO sofrem, e muito o texto mesmo fala da fuga,porque no íntimo , eles já queriam mudar, mas as forças sexuais da alma ainda são muito fortes.
O escritor ,bem que poderia escolher outro tema, que abordasse a fidelidade, harmonia, equilíbrio,união,porque assim contribuiria para o forrtalecimento de uma sociedade mais equilibrada.
Sei que almas masculinas em corpos femininos e vice versa, é uma grande provação, sei que eles sofrem muito interiormente, sei que já é o começo.Mas querer levar esse assunto como NORMAL,para os jovens, isso é de tremenda irresponsabilidade, devemos respeitar SIM,mas sabendo que não é o normal.
Que DEUS ilumine o autor, com novas idéias que sejam construtivas para a sociedade como um todo,onde possam tirar liçoes de versalidade intelectual,moral,perseverança,humildade,companherismo............"O caçador de Pipas" , é um exemplo disso,quantos exempos de dignidade, de amizade a ser seguido.
UM forte abraço.

terça-feira, 20 de maio de 2008

MEMÓRIA DE UM HOMEM


Quim Então (Quinhentão), Manoel Quintino – 87 anos. Escrivão aposentado por amnésia precoce. Duas vezes prefeito de Ité.

Então... Primeiro eu comecei a esquecer de dar andamento aos processos... depois... depois... não lembro mais muito bem o que aconteceu...
Mas lembro bem de algumas coisas e sei que esqueci quase todas as outras.
Então... como? ... pois é, o apelido é disso mesmo...
Mas então... É interessante que não esqueci seletivamente coisas que me incomodavam. Eu lembro de muitas alegrias e lembro também do dia que minha esposa me pegou com a Judite, a irmão dela...
(reflexão)
... é, ser pego com a Judite não dá pra dizer que é uma lembrança ruim... como era gostosa a Judite... ia lá em casa com aquelas saias plissadas e blusas soltas, sem sutiã... sempre quando Tereza tinha ido no mercado...
- Tereza saiu?
Ah! Judite... derrubou molho de tomate na blusa e pediu pra eu ajudar a limpar... sem sutiã... nunca tinha tido nestas mãos carne tão tenra... nem estes lábios jamais beijarão mamilos tão róseos...
Então... Não, Judite já foi um lembrança ruim, no tempo em que eu pensava que ainda teria muitas Judites... só sobrou ela... até porque, se teve outras, acho que esqueci... ou só lembro de vez em quando...
Tereza, que me ajudava a lembrar das coisas, morreu ano passado... ano passado? Que ano a gente ta mesmo, heim menino?
O que a gente ta fazendo aqui mesmo? Como é....? Gravando uma entrevista... e por que você quer uma entrevista comigo? Eu fui alguém importante e não lembro mais?
Como? 2007... o que é 2007? Ah... ano 2007... Quem? Tereza? Quem é Tereza...?
Eu fui prefeito é?
Então... fui duas vezes prefeito e Tereza era minha esposa... é claro que eu lembro disso... lembro de muita coisa. Mas tem coisa que eu queria esquecer também...
É por isso que você ta me entrevistando?
Meu filho, que é prefeito agora, pediu pra eu não dar mais entrevista, disse que eu to falando coisa que não podia... mas é bom ser lembrado... e ninguém acredita muito em velho mesmo...
Quem? O quim... o meu neto? É Secretário de Cultura é?
Então... ainda vai ser prefeito...
Como? Não tem faculdade?
E quando faculdade dá voto menino? Me diga se faculdade dá voto...quer que eu te conte o que dá voto?
Então... lembra das enchentes? É, faz tempo, mas isso eu lembro...Olha só... isso aqui onde a gente ta hoje era tudo água... muita gente ajudou.. eu vivia aparecendo de calça arregaçada ajudando gente... isso dá voto menino... levava uma criança no colo até um barco... carregava umas caixinhas de remédio no bolso...
E veio muita ajuda de fora, coisa que nem precisava, nem tinha onde guardar direito... ainda bem que meu irmão tinha um galpão. Veio um caminhão daquela fábrica de roupa.. a staroup, isso nunca esqueci... era roupa boa pra essa pobreza... calça, camisa, jaqueta... tudo jeans... ficou lá no galpão, não era bem isso que o povo tava precisando... ficou lá...
Então...
(reflexão)
Você pode imaginar o que isso deu de voto depois, heim menino? Deu muito voto... muito... e você acha que faculdade dá voto?
Então... faculdade é preciso... mas pra quem auxilia a gente... contador, advogado... esses são importantes mas não valem nada na urna... na urna vale uma carradinha de barro, uma ambulância na porta pra levar pro hospital... uma roupinha...
Então... pra que o Quim ia fazer faculdade? Se fizer é só pra pegar o diploma...
Secretário do que ele é mesmo menino? Da cultura... da cultura é ruim, heim... cultura não da voto... tinha que ser da saúde... da educação... da educação dá muito voto menino...
Sabe o que eu fazia com as escolas pequenas da periferia? Eu não mandava giz... mas não era por maldade não menino, era estratégia... Então... daí o diretor ia lá na prefeitura reclamar e eu conversava com ele, na minha sala... Impressionava sabe... daí eu perguntava sobre os professores, de que partido eram, como estavam se comportando... só depois eu dava as caixinhas de giz... tinha todo mundo na rédea curta... bobeasse eu cortava...
Então... A Zizinha foi minha secretária de educação... carregava um monte de voto, aparecia em tudo, não acontecia nada sem que ela soubesse, tava sempre no meio do povo... a oposição falava que eu tinha um caso com ela... era bonita a Zizinha, mas a gente não tinha nada... nada importante, né menino... nada importante... e era fogosa a Zizinha... como era...
Que pernas que tinha a Zizinha!
Então...

terça-feira, 13 de maio de 2008

A luz do quinto andar


A toalha branca e uma rosa vermelha solta na mesa, como se ali estivesse meio ao acaso. O cd da Maria Rita, na música certa, apenas esperando um leve toque no controle remoto. Um malbec devidamente uniformizado, com o guardanapo branco, as taças, os pratos, os talheres...
Em ordem, no balcão de granito o azeite, a tábua com alho picado e galhos de coentro, o pote com o creme de leite e 200 gramas de salmão defumado, cortado em pequenas tiras. As azeitonas e meia taça de vinho branco. O penne, o saleiro, a pimenta do reino e, no fogão, a panela alta com água já aquecida.
Os últimos redemoinhos de fumaça do incenso de sândalo ainda se perdiam na meia luz do apartamento e, do outro lado da janela da cozinha, lá na outra rua, uma luz acende no 5.o andar.
Fecho mecanicamente a persiana, como se virasse uma página do passado. Rogério não demora. 21:00 horas.
Procuro o espelho do hall e não me surpreendo com quem vejo: uma fugitiva, de um 5.o andar, de uma rua ao lado.
No dia exato, na hora exata dos meus 32 anos, quero estar com Rogério, nua em seus braços, aos espasmos, fazendo aquele ar de incredulidade que ele tanto gosta quando gozamos juntos, e não vou pensar na luz do 5.o andar, que poderá ainda estar acesa. Olho meus olhos bem de perto, quase tocando a ponta do nariz no espelho e tento ver se há algum disfarce na minha vontade. Impossível! Há muito deixei de acreditar nos meus olhos! O telefone desarruma repentinamente o silêncio ordenado do apartamento. Um pulo e um tremor correndo pelo corpo:
- Elis, vou atrasar um pouco...
Acho que não ouvi a explicação. Ele ia atrasar, por que saber o motivo? Bastava saber que ele ia atrasar. Outro incenso. Um pouco masculina minha maneira de esperar Rogério, como se a ordem estivesse intencionalmente alterada. Mas ele adorava, era o primeiro que adorava minha autonomia, minha independência, e jamais dissera: você parece o homem do casal!
Nos conhecemos no trânsito, ou melhor, no estacionamento do shopping. A princípio pensei que era gay, com aquela cara vermelha, pendurado numa chave de roda, tentando soltar as porcas do pneu furado, suando como um peão de obra. Sorri da sua falta de jeito e, como simpatizo com as “colegas,” resolvi dar uma força. Até pensei em usar o simples artifício de ficar em pé na chave de roda, mas ele se sentiria meio ridículo se eu conseguisse muito fácil, por isso, antes perguntei se o carro tinha seguro:
- Você não vai chamar o seguro apenas para um pneu furado?
- Se você prefere ter um enfarto...
Ele achou aquilo ridículo, bem coisa de mulher, mas, aceitou. Quando o mecânico, com um sorriso debochado no canto dos lábios, terminou o serviço e pediu para ele assinar uma nota, fiquei surpresa com a pergunta dele, à queima roupa:
- Que horas eu te pego para o jantar?
No tempo que esperamos o mecânico eu já havia colocado em dúvida minha opinião inicial e descoberto que ele era arquiteto, que nunca se ligara muito em carros e que havia mudado para cidade naquela semana.
Resumindo: transamos loucamente naquela mesma noite. Tudo bem, nenhuma novidade nisso, a não ser pelo fato de termos transado antes do jantar, quando eu passei no apartamento dele para apanhá-lo, já que ele não era do tipo que se importava em ir pegar a mulher. Quem mandou ele me esperar com aquela camisa branca desabotoada e com o Fahreinheit invadindo todo o ar que eu respirava? Na hora eu pensei que seria apenas mais uma boa transa, uma noite especial para uma quarta-feira, mas, três meses se passaram e as noites especiais têm se repetido nas quintas, sextas, segundas...
Quanto tempo ele ia atrasar mesmo?
Acendi o cigarro e apaguei-o, de imediato. Havia dito que ia parar e eu jamais fui de voltar atrás no que dizia. Foi engraçado eu pensar isso, ao mesmo tempo que abria delicadamente a persiana da cozinha e olhava novamente para a luz do 5.o andar, como um reflexo condicionado da paixão. Eu nunca voltava atrás?
Estava apagada e, sempre que estava apagada, alguma coisa se apagava aqui dentro também. Era como se o passado pudesse ser desconectado num simples interruptor. Fechei a persiana, comi uma azeitona, bebi um gole do vinho branco, como se o passado, a azeitona e o vinho, tivessem a mesma importância naquela noite, especial.
Outro susto, o telefone toca novamente e eu penso em não atender. Sabe lá se não é um paciente em crise existencial, um parente querendo dar os parabéns, ou... é, ou...
- Só mais um pouco querida, encontrei o ...
Eu não quero explicações. Além do mais, jamais darei uma de “mulherzinha” que vai esperar chorosa o marido atrasado e distraído. Nunca liguei por ter que esperar alguém, pelo contrário, as esperas são momentos raros que posso abrir um livro. Livros, cheios de vidas, que clamam angustiadas que tenhamos algum tempo em lê-las, em devassá-las.
Abro meu Quintana e leio: sempre que chove, tudo faz tanto tempo... Ainda não havia percebido que algumas gotas de chuva lacrimavam na janela. Por instantes julguei o Quintana um grande sacana, pela precisão aritmética medida no seu devaneio. Virei a página e pareceu que, de repente, um abismo tragou-me assustadoramente. Faltou-me a luz, o ar, a sanidade. Foi o bilhete achado, ou minha reação tão feminina diante do bilhete, dobrado em dois, com uma pétala de rosa dentro?
você tem o beijo mais macio que conheço
tuas mãos tocam meu corpo como se eu fosse uma pétala
Aquilo que descia pelo meu rosto não podia ser uma lágrima. Não podia estar “fazendo tanto tempo” em meu rosto. Quintana que me perdoasse!
Sim, chorei. Chorei como qualquer mulher chorona choraria, com o livro apertado ao peito e um pedaço do passado amarrotado dentro dele, como se eu pudesse sufocá-lo, apenas. Por que? Por que tinha que ser daquele jeito? Por que tinha que ser tão complicado? Era muita coisa pra enfrentar e ter que revelar meus medos, minhas inseguranças. Por que Rogério não chega logo?
Não, agora ele não pode chegar. Não ser mulherzinha é uma coisa, mas esperar um homem especial como o Rogério com a maquiagem borrada não era possível. Lavei o rosto com água fria, suspirei fundo e, pronto, hora de recomeçar! Troquei de roupa, aquela estava irremediavelmente contaminada de passado. Troquei tudo. Tirei a calça e procurei uma saia. Tirei a calcinha preta fio dental e coloquei a branca transparente. Tirei o sutiã e fiquei sem, sabia que ele adorava o leve balançar dos meus seios, perdidos dentro de uma roupa folgada, e que ficava procurando ângulos onde pudesse espiá-los, descaradamente. Um pouco mais de Tressor, um pouco mais de batom, uma blusa solta.
Ainda era fácil vestir aquele corpo em perfeito estado. 1.70 m, 55 kg, cabelos negros caindo pelos ombros, levemente cacheados e contendo no seu interior um par de olhos verdes, perfeitamente mentirosos. A pele, já um pouco bronzeada para esperar o verão, mais do que à altura para aquele belo exemplar de macho que estava para chegar.
Na primeira vez, quando fui dar o beijo no rosto dele, logo na porta do apartamento, não resisti e aconteceu um dos melhores beijos que me lembro. Nossos corpos colaram imediatamente e tenho a certeza que nós dois pensamos, ao mesmo tempo, o quanto eles se adaptavam com perfeição. Parecia que nenhum espaço havia sobrado. Parecia que não houve surpresa. Ele respirou com a boca aberta atrás da minha orelha, como se já soubesse há anos que eu adorava isso, e seu hálito quente me incendiou instantaneamente. Puxou-me para dentro e bateu a porta com o pé, me abraçando pelas costas e beijando minha nuca. Loucura. Suas mãos eram adestradas por um impulso hábil e senti, com facilidade, que nele havia algo além da simples masculinidade. Vi pilhas de caixas de papelão. Vi sacolas, livros amontoados, em flashs, quadros por pendurar, vi um sofá branco, todo branco, todo lindo, nosso destino, nosso porto seguro para nos abrigar do temporal que provocávamos.
Quase duas horas depois comemos uma deliciosa meca grelhada, com camarões e saladas. Acho que podíamos ter comido no Mc Donald’s, tanto fazia. Tudo em mim já estava saciado. Tudo? Doce ilusão que o tesão injeta na jugular da vontade. Planta verdejante que brota, cresce, floresce, e morre antes mesmo que possamos tirar a primeria flor.
Naquela mesma noite fiquei um longo tempo olhando a luz acesa do 5.o andar. A impossibilidade, a irracionalidade, o carimbo da censura, o estopim curto que podia explodir minhas pontes, meus viadutos. O atalho. Eu não seria a outra!
Quantas noites só fui dormir depois que a luz apagava? Como se, desta forma, mantivesse ainda vivo algum tipo de cotidiano, que, na verdade, nunca tivemos: já escovou os dentes? Pegou água? Você costuma ter sede durante a noite... posso apagar a luz? Ainda vai ler?
Ah! O medo! Tão desalmado meliante, vigarista de primeira linha, de coração frio. Acho que por isso o medo causa tremores. Quantas desculpas achamos na vida por causa do medo! Quantos escudos, com seus brasões, símbolos de famílias fidedignas ostentados. Ah! O medo! Como pode ser mais poderoso do que aquele olhar maroto abrindo a porta para mim, com as luzes todas apagadas e sumindo logo em seguida na escuridão, depois de fechar a porta nas minhas costas, para que eu os encontrasse pelo perfume da pele? Como o medo pode ludibriar a impressão daquele toque nos meus pontos mais corretos? Aquela língua macia e sem pressa, fazendo e desfazendo caminhos em meu corpo? Como pode o medo enganar que não precisamos nada disso? Que não precisamos daqueles suores, daqueles líquidos escorridos nas nossas palmas?
Se Rogério chegasse agora eu o devoraria como na primeira noite, antes do jantar, antes que eu enlouqueça. Quanto tempo ele ainda demora? Quem mesmo ele havia encontrado? Será o Ronaldo que eu ainda não conheço e que estava para chegar? Este Ronaldo que ele fala de um jeito que eu resolvi chamá-los de RoRo, e ele apenas riu. Não, ele não se atreveria a trazer este Ronaldo aqui, logo hoje, no meu aniversário. Se ele fizer isso eu como os dois!
A campainha. Olho-me uma vez mais no espelho, segura que serei estilhaçada imediatamente. Um pouco mais de Tressor, para garantir. Nem me atenho ao olho mágico. Abro a porta. Outro abismo. Como a mais perfeita mulherzinha, sinto as pernas amolecerem e temo pelo vexame do desequilíbrio. Não pode ser:
- Você!
Recuo um passo, o suficiente para a ponta dos meus dedos tocarem a beira do aparador. Qualquer toque em algo sólido era necessário, não apenas para manter meu equilíbrio, mas também pela sensação de realidade que as coisas rapidamente nos trazem.
- É seu aniversário, eu lembro...
- Sim, não pensei que lembraria.
- Você está linda...
A porta do elevador se fecha no corredor e eu escuto, pela porta que dá para escadas a voz grave de Rogério. Logo agora! O elevador está descendo para apanhá-lo. Quatro andares, apenas quatro andares.
Uma daquelas eternidades que se espremem nos minutos estava acontecendo e eu não sabia se ouvia o silêncio, ou se o silêncio era apenas uma alucinação. Parecia que seus lábios se mexiam, mas eu não sabia que palavras saiam por ali. Mas eles se mexiam e se aproximavam, cada vez mais. Meu espírito corria, já ia léguas distante, mas meu corpo petrificara, deliciosamente, e esperava atônito aqueles lábios, que mexiam, e me enchiam com um beijo, um sugar de energia, uma implosão.
A voz do Rogério aumentou de volume pelas escadas. O elevador já devia ter chego, mas eu ainda ouvia sua voz lá embaixo, agora mais alta, como se discutisse com alguém, porém eu não distinguia palavra alguma. Somente sentia, se é que sentia realmente, aquelas mãos mornas levantando minha blusa nas costas e deslizando em minha pele. Que mulher era eu que me arrojava assim, sem pudor algum? Meu homem ali embaixo e eu aqui, mas embaixo do que ele.
O telefone, outro susto. Empurro aquele corpo, afasto suas mãos com dificuldade, tento não olhar seus olhos, eu sabia que não podia olhar seus olhos, para o meu bem.
- Elis, eu estou aqui embaixo... mas... estou resolvendo um problema...
Suba logo ou vá embora logo. O que eu queria? Não sabia, nem sei o que disse.
- Você está esperando alguém?
A mesa posta era a óbvia resposta, mesmo assim respondi:
- Não era você, com certeza.
- Mas eu não vou embora. Vou ficar.
- Como assim? Você tem que ir embora, ele já está lá embaixo, acabou de me ligar dizendo que logo vai subir...
- Eu não vou embora. Chega, estamos perdendo tempo... do que você tem medo?
- Você não entende... além do mais, já disse que não serei tua amante... não serei a outra, nunca...
- Eu não estou mais com a Juli, terminamos...
Eu precisava fugir, enquanto era tempo.
Não houve tempo. Eu sempre soube que minha fuga era um simples atestado de incompetência na arte da resistência. Jamais conseguiria resistir seus olhos, seu jeito de chegar, de encaixar, sua maneira de me segurar, com firme delicadeza. Facilmente suas mãos acharam o zíper atrás da saia, que escorregou pelas minhas pernas, junto com o que restava em mim de racionalidade. Sua coxa entrou entre as minhas e seus lábios sorriram quando percebeu o calor que me abrasava. Eu estava lânguida, uma caça abatida, mas era preciso resistir, Rogério devia estar subindo. Libertei-me uma vez mais e corri para a porta, meio sem saber se fugia ou a trancava. Não podia fugir só de blusa e calcinha.Tranquei-a.
Encostei a testa na porta e respirei, precisava ao menos de um minuto, mas novamente não tive tempo algum. Seus braços outra vez me envolveram e logo acharam a liberdade dos meus seios. Com extremo requinte de covardia seu hálito quente alojou-se atrás da minha orelha. Uma vez mais os joelhos dobraram, levemente, mas fui amparada por aquelas mãos que já desciam pela minha virilha e descobriam a umidade do meu desespero. Socorro! Mas somente minha alma gritava. Virou-me de frente e falou:
- Eu não vou mais embora.
A campainha. O silêncio banhando aquele riso ousado, malvado. Como qualquer mulherzinha caí em desespero. Eu nunca era de esconder nada, mas não podia ser apanhada assim, em tão profundo desalinho íntimo. Empurrei segura aquele corpo para longe do meu e o levei para o escritório. Não precisei falar nada, meus olhos já diziam: - Não saia daí...
Vesti a saia.Mais um toque da campainha, o terceiro. Olhei-me no espelho do hall e confesso que não vi nada.
- Acho que esta chateada comigo.
- Não... quer dizer, você demorou...
- Precisamos conversar.
- É... acho que precisamos...
- Quero te apresentar uma pessoa.
- ...?
- Ronaldo...
Rogério não havia entrado e eu não me dei conta que não tinha pedido para ele entrar. Quando ele falou Ronaldo, este apareceu na minha frente. Parecia ter a mesma idade de Rogério, a mesma altura, mas, enquanto Rogério era do tipo mais intelectual, Ronaldo era estilo praia, tez bronzeada, barba por fazer, camisa aberta, malhado. Um belo exemplar!
- Entrem - pedi, um pouco constrangida.
Era meu aniversário. Eu havia nascido as 23:45h. Faltava pouco para eu fazer 32 anos e no exato momento eu queria estar entregue a ele, ou ao menos queria, até poucos minutos atrás. Por que ele trouxe Ronaldo? Será que estava pensando numa safadeza a três? Já havíamos comentado sobre isso, mas sempre em tom de brincadeira. Não, ele não se atreveria.
Ronaldo entrou demonstrando admiração pela mesa bem posta. Havia um evidente constrangimento no ar, e o 5.o andar do outro lado da janela estava aceso bem no meu escritório. Ficamos os três nos olhando, no meio da sala. Eles pensando que eu estava perdida com a presença de Ronaldo, e eu, realmente perdida, mas não pelo que imaginavam.
- Você disse que precisávamos conversar - falei, tentando parecer normal.
- Eu e Ronaldo precisamos conversar com você. Eu não quero que você me entenda mal... na verdade, nem sei bem por onde começar...
Enquanto Rogério gaguejava, Ronaldo, que demonstrava alguma impaciência, virou-se para ele e, sem nada hesitar, segurou seu rosto e o beijou, na boca. Um beijo rápido. Sem soltar o rosto de Rogério, olhou para mim e sorriu, depois o beijou novamente, um longo beijo diante da minha tentativa de parecer estupefata. A princípio Rogério quis resistir, mas só a princípio. Eu fiquei onde estava, no espaço, no tempo. Tudo ao mesmo tempo, tudo na mesma noite. Não sabia se ria, chorava, ou me unia.
- Sempre ouvi falar que um ato vale mais que mil palavras - por fim Ronaldo falou, ainda abraçado com Rogério. Depois completou: - Ainda precisamos explicar mais alguma coisa?
- Não. Já basta! - falei olhando para baixo, fazendo de conta que não sabia o motivo real que não queria encara-los, mas sabendo. Nisso Rogério veio em minha direção e tentou me abraçar. Eu não poderia, não pelo que acabara de ver, mas não poderia deixar outro corpo tocar o meu naquele momento e poluir a deliciosa impressão que ainda ardia nele. Não, afastei-me.
- ... me perdoa, eu sei que é seu aniversário... eu mudei pra cá por causa disso... estava fugindo...
- Eu entendo... como eu entendo de fugir! Não tem nada demais, mas... por favor, vão embora... preciso ficar... sozinha.
- ... mas...
- Sejam felizes...
Ainda nos olhamos na porta. As palavras mudas que nossos olhares trocavam diziam que havia sido bom, não precisavam expressar-se em sons. Deixamos o silêncio marcar nossa despedida. Nada de reunir mais elementos para qualquer memória emotiva. Encostei a porta devagar. Finalmente conseguia um tempo, breve que fosse. Parecia que o apartamento em meia luz estava em silêncio agora, mas não, eu sabia que não. Era quase ensurdecedor.
Tirei meus sapatos e pisei macio pelo tapete. Tinha a impressão que podia gritar e ninguém me ouviria, que minha voz não conseguiria sair de mim. Mais um passo. Havia terminado com Juli. Bastava? Era o suficiente para eu passar por cima de tudo? O passado, o presente, o futuro? Toquei levemente o botão do controle remoto:
Um belo dia resolvi mudar
E fazer tudo o que eu queria fazer
Lentamente girei o saca rolha. Minhas pernas ainda tremiam e podia sentir o incêndio que ainda tomava conta do meu sexo. O vinho deslizou graciosamente pelas taças, um bailarino risonho. Era preciso decidir o que eu já sabia estar decidido, senão, por que encheria as duas taças?
Coloquei a mão sobre a maçaneta. Segurei um pouco a respiração, com o pulmão cheio de ar. Soltei lentamente. Do outro lado o 5.o andar com sua luz acesa, agora somente para mim. Eu havia falado que não seria a outra. Não podia negar mais, Juli havia ido embora. Por que não? Por que tanto medo?
Abri e encontrei um sorriso, o mais lindo sorriso que eu conhecia. Sabia que o incêndio ia continuar, sabe lá por quanto tempo, sabe lá o que sobraria de mim depois. Estava decidido e já fazia tempo, só eu que me enganava que não. Que tudo se danasse!
- Ele já foi?
- Já...
- Posso sair?
- Sim... Regina, pode sair.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

filosofando

conversa que eu peguei de canto de ouvido, na calçada, de duas crianças que voltavam da escola. Dez a doze anos, por aí:
- O Júlio e a Ana formam um casal perfeito...
- É... por que?
- Os dois são feio e chato...

Pois é. Quem disse que criança não filosofa?

quarta-feira, 16 de abril de 2008

A biblioteca dos sonhos... e pesadelos



Eu sempre pensei que quando vir a morrer, gostaria de entrar no céu, ou seja lá o que for, por uma grande biblioteca mundial, onde todos os autores vivos ou mortos estejam por ali, para o meu deleite pessoal. Foi por tanto tempo que mentalizei como queria essa minha passagem que não posso dizer que estou surpreso agora. Só posso acreditar que chegou a hora. E olha que mentalizei isso sem nenhum livro de auto-ajuda, nem li livros específicos sobre o assunto. Foi sem segredos e sem a magia de magos. Só achei que deveria ser assim e pronto. E parece que assim foi. E agora? Na minha frente essa grande biblioteca mundial de todos os tempos. Um infinito número de corredores cruzando estantes altíssimas e autores circulando suas obras como fêmeas que cuidam de crias recém nascidas. Autores, personagens e parece até que alguns editores, não muitos é claro, eu não iria mentalizar isso. Será que essa biblioteca é só minha ou também serve pra outros leitores inveterados? Nessa minha longa vida de leitor eu sei que não merecia muito; li muita porcaria por vontade própria e fugi de autores consagrados, até mesmo por isso, como sempre fugi da unanimidade (que me disseram que era burra e concordei). Agora, pela vidraça da porta, eu vejo muitas pessoas andando por ali e conversando com todo mundo. Não sei se são leitores ou autores, afinal, quase todo mundo escreveu um livro e entulhou prateleiras com suas grandes idéias. Mas não posso me demorar mais, preciso abrir essa porta e ir adiante. Bastou abri-la e o leve ruído das dobradiças fez com que todos os que estavam ao alcance dos meus olhos se virassem e, em seguida, se olhassem entre eles. Fiquei estático no primeiro passo além da porta, sem saber o que fazer. Havia entre eles uma espécie de ansiedade, uma estupefação mal contida, uma dúvida também do que fazer. Então entendi o que era, quando a Taylor Caldwell falou para Guimarães Rosa:
- É a sua vez...
- Eu? Tem certeza...
- Tenho... caiu você no sorteio, não lembra?
- Mas já faz tanto tempo...
- Ta chovendo é? Sempre que chove, tudo faz tanto tempo...
- Ô Quintana, não devaneia... quer pegar a minha vez e receber o cara?
- Não vem com essa, ô Rosa – vociferou Hermingway. - Fizemos um sorteio e todos concordaram...
- ... mas tem tanto novato querendo fazer isso... só na ala B tem milhares de pessoas aptas a isso...
- Só porque eles pagaram pra publicar não quer dizer que tenham que fazer todo serviço difícil... além do mais, a catalogação ocupa todo o tempo deles – contestou Rosamunde Pilcher.
- Vocês estão fazendo muita confusão, ele é apenas mais um fantasma... um José Arcádio...
- Pare com isso Garcia! Nós já vivemos um realismo mágico sem você forçar a barra. Já não basta o Braz Cubas que vem me procurar toda semana, você quer de volta um Buendia? Não lembra a confusão que ele arrumou com o Raduan Nassar? - protestou Machado de Assis, limpando seu monóculo.
Eu vi que a discussão ia longe e estava ficando encabulado vendo tanta gente boa se preocupando por minha causa. Fui saindo dali encostado na parede e, sem que percebessem, pois a discussão continuava, entrei pelo primeiro corredor que encontrei. Todos que estavam ali também me olharam, mas, ao contrário dos best-sellers anteriores, todos sorriram e vieram juntos ao meu encontro. Demorei um pouco a reconhecer aquele senhor sorridente que me alcançava de mãos estendidas, de cabelos ralos e brancos:
- Sorte é quando a preparação encontra a oportunidade...
Reconheci. Lair Ribeiro! Atrás dele Zíbia Gaspareto, Rhonda Byrne, Shirley Maclaine, Paulo Coelho, e outros tantos. Ai Meu Deus, onde fui cair!!! Eu nunca li Lair Ribeiro, nem mesmo Paulo Coelho (e é claro que me orgulho por isso), nunca li auto-ajuda, mas, como é que vou dizer isso a eles? Só tive uma alternativa, virei as costas e saí correndo, virando o corredor e entrando em outro, onde dou uma trombada de arrebentar no Salman Rushdie, que me gritou uns versos satânicos e logo lembrei do chatíssimo Shalimar, o Equilibrista, que desisti de ler no meio do caminho, mesmo o livro sendo autografado por ele mesmo. Elegantemente ajudei-o a levantar e pedi desculpas, sabia que era um cara bacana. Tentei seguir adiante sem muito atropelo por aquele grande corredor, passando pela Asne Seierstad, Khaled Hosseine, e outros tantos vinculados ao mundo árabe. A impressão que um homem bomba sairia de algum desvão a qualquer momento me fez acelerar de novo o passo. Virei a esquerda e, numa sala confortável que se abria, encontrei Divaldo conversando com Hermínio Miranda, enquanto o Chico psicografava numa mesinha ao lado. Os dois me olharam e acenaram, enquanto pediam silêncio. Saí da sala um pouco mais calmo e fui pra outro corredor, aleatoriamente. Sabia que estavam todos ali, espalhados. Sonhei com isso, esperei por isso, pedi por isso. No final de um corredor encontrei um café requintado e, na primeira mesa, Willy Fog ouvia atentamente Julio Verne, já um pouco passado com um copo de whisky na mão (e eu nunca ouvi falar que ele bebia). Solitário numa mesa o Sr. Holmes assinalava seu jornal com uma caneta de marcação amarela. Espero que não fosse no caderno de empregos. Encostado no balcão, conversando com um barista, estavam Simone Beauvoir e Sartre, envoltos em anéis mágicos da fumaça de seus cigarros. Mais para o canto e sem nenhuma vergonha da sua pouca roupa, Tarzan, tomando de canudinho um suco de acerola e com os olhos fixos no outro lado do balcão. Segui seu olhar e, para me tirar o fôlego, encontrei Gabriela, sorrindo um pouco encabulada, com uma rosa no cabelo. Gabriela! Nossa! Que imaginação! Meu sonho de adolescência. Diante da possibilidade de uma saudosa ereção, saí dali por um corredor sombrio, que me levou diretamente até Mary Stewart, que me sorriu. Quis conversar com ela, precisava conversar com ela, mas logo o Zafón me pegou pelo braço e me agradeceu pelo tanto que gostei da Sombra do Vento. Quase chorei. Ele me levou até uma porta toda de cristal e ficou esperando pra ver minha reação. Dei de ombros; sabe quem lá quem estava lá dentro!! Foi Bernard Cornwell quem me abraçou (e quase chorei de novo) e disse: Erasmo, Homero, Victor Hugo... e por aí vai. Quer entrar? - Ah... não, respondi – sou apenas um leitor mediano... não quero voltar pro corredor da auto-ajuda, mas não precisa tanto... Então a Marion Zimmer me pegou pela mão e, sorrindo, me disse: - Você já viu que horas são? Fiz de conta que nem me impressionei por estar falando com ela e olhei no relógio: 18 horas... O quê!!! Ela me levou por um corredor muito iluminado e pediu pra eu correr que daria tempo. Eu ainda queria passar por muitos outros corredores. Ainda quis parar, mas o Tabajara Ruas parou de beber seu mate e falou: - Te apressa homem. Segui o conselho e não parei mais. Acordei no fundo de um dos corredores da biblioteca pública, sentado no chão e com a cabeça encostada na parede, a boca entreaberta e quase babando, com dezenas de livros espalhados pelo chão. Corri pelo longo corredor e ainda consegui gritar para dona Alzira, que quase estava fechando a porta de saída. Ufa! Quase passo mais uma noite trancado na biblioteca.

terça-feira, 8 de abril de 2008

teu beijo

Eu queria uma casa pra voltar no fim do dia
Que não fosse só minha
Mas que também eu pudesse partir sem avisar
De manhãzinha
Onde se pudesse ouvir
O som doce do vento cantando na fresta
Da janela sempre por arrumar
Mas que não se arruma
Só pra poder ouvir o doce vento cantar
Uma casa com violetas nos peitorais
Pra tristeza não debruçar jamais
E que tivesse grandes gramados de adormecer
E mato de se perder
E bichos
e saudade do que ainda está pra ser
E que tivesse teu beijo
se entardecer
Teu beijo
se amanhecer
Teu beijo
se nada mais fosse pra acontecer...

segunda-feira, 31 de março de 2008

Senhores do Crime... um comentário

Domingo fomos no ótimo cinemark do Floripa Shopping, assistir Senhores do Crime. Compramos as poltronas 17 e 18 da fila L e entramos num cinema quase vazio, não mais de 15 pessoas e, nas poltronas 17 e 18 da fila L, um casal sentado. Como havia bastante lugar sobrando, sentamos na mesma fila um pouco à frente e não incomodamos o singelo casal, que também em nada se incomodou com a nossa presença, mesmo sabendo que estavam sentados nos nossos lugares. Mania de brasileiro? Sintomas de terceiro mundismo, como furar fila, ser mal educado no trânsito e tantos outros vícios de anticidadania enraizados na má educação coletiva? Por sinal, o casal não viu o filme (poderiam ter usado o dinheiro das entradas num motel, seria mais pratico, exceto que o cinema seja uma tara).

Então eu fiquei pensando (não por muito tempo porque o filme era ótimo): neste círculo vicioso, que pode começar em qualquer ponto que vai da propina a um guarda de trânsito à pungente falta de vontade política de melhorar a escolaridade, passando pelos políticos abjetos, funcionários corruptíveis e empresários corruptores, qual a minha melhor contribuição para frear este moto-continuo: Pedir educadamente, ou nem tanto, pra que desocupem os nossos lugares, ou manter o equilíbrio ético do meu pequeno universo particular, onde transitam as pessoas do meu convívio e influencia? Lutar contra a anticidadania estabelecida de maneira mais objetiva, ou continuar olhando-a e tentando impedir que ela faça parte do meu pequeno mundo? Qual a ação, já que as duas situações são bastante ativas, é mais interessante para o coletivo?

Não, não esperem conclusões de minha parte. Ainda não, até porque, como disse antes, o filme começou e era ótimo. Um pouco cru ao mostrar a violência explicita (comum do diretor, David Cronemberg), embora realista, no entanto excelente ao nos surpreender com uma trama inteligente, envolvendo bondades, vilanias e fraquezas humanas, numa medida tão correta que ficamos torcendo para o filme demorar um pouco mais. Alem disso, se passa em Londres, e parece que por isso entendemos porque o diretor não se preocupa em explicar tanto, revelar, esmiuçar, tão necessário ao modelo intelectual americano. Quem assistir não pode deixar de conferir como a fotografia do filme trabalha com a pouca luz da cidade, levando-nos subliminarmente ao mundo pesado e escuro do enredo. Também sobressaem as atuações do novaiorquino Viggo Mortensen e da inglesa Naomi Watts. Sem dúvida, vale a pena conferir. Enquanto isso eu fico aqui pensando na melhor conduta para as outras vezes que sentarem no meu lugar no cinema. Aceito sugestões.

terça-feira, 25 de março de 2008

outono

Por onde andam todos?

Já é outono

e caíram algumas folhas pela minha janela.

O tempo engoliu-me em seus vórtices

tragou-me de agonias e velhices

não me deixou ser

não me permitiu ter idades

marco-me por sentimentos e estações

por folhas que caem na minha janela

e por pessoas que partiram

antes de todos os outonos

vivo

por saber que vivo

e por perguntar onde andam todos

cada vez que lembro

o outono do meu tempo

viver não é um contar de tempo

e sim um contar de amores.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Roberta Sá... uma dica...

Já faz tempo eu vi você na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunida... na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais...
cada vez que não passamos "com" o tempo, o saudosismo vai aprofundando raízes nos nossos gostos, ou pior, na nossa sensibilidade. Daí, muitas vezes sem percebemos, começamos a ficar chatos.
Cada vez que não passamos "como" o tempo ficamos lembrando e relembrando e tentando reviver tantas músicas, tantas pessoas, filmes, situações, peças, viagens, sentimentos... é inevitável que percamos a percepção das boas coisas contemporêneas que nos rodeiam... e isso é um grande fiasco pra quem gosta da arte, qualquer arte.
É impossível viver sem saudade (tristes os que conseguem). Temos um repertório artístico formidável que passou pelo tempo que vivemos, ou mesmo antes disso, mas como podemos ficar chatos se não soubermos criar novos passados: músicas, pessoas, filmes, situações, peças, viagens, sentimentos...
A música talvez seja um campo onde mais os chatos ficam os pés no passado. E como é bom ouvir esse passado! Porém, a sensatez pede desprendimento; a evolução pede atenção ao novo, com as portas do coração abertas e aquela afinada capacidade de separar o joio do trigo sempre ativa...

A Roberta Sá, ao meu ver, tá conseguindo a sintonia do tempo que foi com o que está... e espero com o que vem... Alguns podem até dizer que ela não é mais novidade e eu concordo. Mas poucos ainda a conhecem. Tá cantando muito, tanto aquelas músicas que se enraizaram profundamente em nós, como uma gama de coisas boas e novas, de gente que não deixa o tempo somente ir passando...

Uma amostrinha
Janeiros
Roberta Sá
Composição: Roberta Sá e Pedro Luís

É como o vento leve em seu lábio assobiar

A melodia breve lembrando brisa de mar
Mexendo maré num vai e vem pra se ofertar
Flor que quer desabrochar, nasceu
Dourando manhã...
Bordando areia
Com luz de candeia pra nunca se apagar.

Já passaram dias, inteiros
Janeiros, calendário que nunca chega ao fim
Início sim e só recomeçar.

Se ainda não conhecem e querem conhecer, entrem no site oficial (www.robertasa.com.br) e se deliciem... é claro que tem como baixar o três albuns dela, mas dá pra entrar numa loja e pedir também.

domingo, 16 de março de 2008

simples


às vezes precisamos de uma varanda
que se abra para um campo verde amanhecendo
com alguma neblina bordando a solidão
e também do alarido de cata-ventos
de crianças seminuas um pouco distante
catando o tempo que não se importam em ver passar
e ter ao lado alguém que se possa dizer amar

sem palavra alguma que seja feita pra explicar
onde o vento espalhe pétalas arredias
e o silêncio seja maior que a necessidade da voz
onde a maior violência seja a terra por arar
ou os ramos mais velhos por podar
onde a maior tristeza seja a do tempo escoando
pela nossa necessidade de amar...