A tarde começava a encostar na noite quando José
encontrou Maria. Ele a havia deixado aos cuidados de outros instrutores no dia
de Natal, para que ela aprendesse com mais pessoas além dele, mas agora estava
curioso para saber o que ela havia aprendido.
-
Então, como foi o dia? – perguntou.
-
Kara, de boa, fiquei @ com o que Ὢ, vc n imagina o q ta ᾥ☺... nunca ♥ que ia
passar um ☼ assim...
-
Hã???
-
KKKKK... kikikiki... heheheh ... clap clap clap...
-
Maria, você endoidou?
-
Calma, José. É que passei o dia cuidando
de meninos e meninas que ficam o tempo todo grudados no celular... eles
ganharam aparelhos novos de presente de Natal.
-
Ora, mas precisa cuidar deles, se só fazem uma coisa? – perguntou José, mais
para testar o que Maria havia aprendido.
-
Precisa, e muito! Aprendi isso hoje. O maior problema é esse, por estarem em
silêncio quase sempre em um só lugar, os
pais pensam que não tem perigo. Como tem perigo! Muito!
-
Como assim? – insistiu José, incentivando a sua tutelada.
-
A ligação mental destes jovens é intensa e nada precavida. A imensa maioria
fica horas e horas apenas trocando futilidades... são os eternos kikiki, kakaka
e clap clap clap. A mente entra num monoideísmo precursor de várias catástrofes
psicológicas. É como um corpo sedentário, com o tempo adquire infindáveis
doenças até chegar nos derrames, infartos... desenvolve diabetes, atrofias. A
mente aprisionada pelo monoideísmo, mesmo que seja tecnológico e aparentemente
muito ativo, se predispõe à indolência, à preguiça, ao vício... muitos tipos de
vícios. Sem contar tantas amizades fúteis, tantas paixões equivocadas que
acabam dificultando tanto o futuro...
-
Vejo que aprendeu bastante. Então a mente precisa correr, se exercitar?
-
No mínimo caminhar... ver outras paisagens, estabelecer novas conexões, e que
sejam mais duradouras, e não as conexões fugazes, instantâneas da mistura
celular/internet. Você bem sabe meu amigo, e bem melhor do que eu, que as
sombras estão atentas e acompanham aqueles que se escondem da luz. Hoje meu
novo instrutor precisou intervir afastando muitos irmãos mal intencionados de
jovens que não eram ruins, apenas indisciplinados. Agora imagina os jovens que
tenham ainda algumas sementes de maldade ou fraqueza querendo germinar em si,
como o instrutor falou.
-
E os pais pensam que tecnologia é insubstituível. No fundo estão fazendo de
conta que geram segurança, mas só estão pensando no conforto pessoal. Dão
presentes caros para compensar a má vontade quanto à dedicação do seu próprio
tempo... mas, nossa!, você esta mesmo muito abatida. Vejo que aprendeu
bastante, mas, ficar perto de você é como cair num abismo energético...
-
... me desculpe, José, não consigo chegar perto deles e não me envolver
emocionalmente... acabo trazendo muitas energias... ainda estou aprendendo como
se faz.
-
Ora, não se desculpe. Tenho certeza de que fez um lindo trabalho. Mas, venha, vamos
nos movimentar um pouco antes de descansarmos, já que a mente tem ao menos que
caminhar.
-
E aonde vai me levar?
-
Ainda não terminei todos os meus compromissos. Preciso visitar uma família conhecida
que passou por alguns problemas recentemente. Quero ver como está sendo o Natal
deles... – respondeu José, abrindo os braços e projetando ao redor de Maria uma
luminosidade azulada que a fez rapidamente levitar.
-
Ah! Que boa essa sensação de ser levada... obrigada, José! – falou Maria.
-
Minha amiga Maria, você está cansada, então o que me custa a envolver nestas
energias que estão sobrando e carregá-la um pouco... mas veja, é aqui a casa da
família. Olhe ali no quintal, que lindos os dois irmãos!
José
havia entrado pelos fundos de uma casa modesta e passado por uma garagem, que
não era mais do que dois pilares segurando um telhado de amianto projetando-se
da casa. Não havia carro na garagem e a casa demonstrava a situação financeira
difícil pela qual passava a família. No degrau da porta da entrada da casa havia
duas crianças sentadas, em aparente desânimo.
-
Quem são? São lindos mesmo, mas, não parecem estar muito animados com o Natal.
– falou Maria.
-
O mais velho se chama Pedro, tem 10 anos... o mais novo é Mateus, 7
anos... a família sofreu um baque há
dois anos. Eles estavam bem inseridos dentro da sociedade, o pai era um
pedreiro que virou construtor e a mãe cuidava dos filhos. Iam muito bem
financeiramente e nada de material lhes faltava. Mateus e Pedro tinham quase
tudo que queriam. Se não fosse a tragédia, talvez hoje eles estivessem na sua
lista de alienados do celular...
-
Mas... qual foi a tragédia?
-
O pai, Tiago, juntou muito dinheiro e resolveu construir um edifício para
vender os apartamentos. Trabalhou muito, muito, muito. Ele e a esposa sempre
foram muito honestos, mas, como a grande maioria das pessoas, usavam o trabalho
como escudo para justificar o doce vício de ganhar dinheiro. Bem, isso é ainda
melhor do que ganhar dinheiro sem trabalhar, mas, não deixa de ser um vício.
Inclua-se neste vício um pouco de avareza e tudo se complica...
-
Ainda não me contou da tragédia, José... fiquei curiosa...
-
Por ter que trabalhar demais, Tiago não percebeu que a esposa estava doente.
Uma doença quase silenciosa, que ela esperava tratar depois que o edifício
ficasse pronto. Não queria atrapalhar o marido, não queria desviar o dinheiro
da construção para a saúde, então esperou. Quando o marido soube, era tarde, o
câncer já tinha espalhado metástases.
-
Não sei como, mas já imaginava que o caminho era esse... – falou Maria,
entristecendo.
-
Você demonstra ser muito dedutiva, mas a tragédia não foi só isso. Uma grande
enchente, como nunca tinha acontecido antes, tomou conta da construção e toda a
fundação do edifício ficou comprometida. Muitos apartamentos já estavam
vendidos e, depois da água baixar, Tiago trabalhou ainda mais para honrar seus
compromissos, só que, em área de inundação, ninguém quer comprar imóvel. Nem
conseguiu vender novos apartamentos, nem entregar os já pagos. A ruína
financeira foi inevitável, assim como a morte da esposa. Tarde demais para
tratar, ainda mais sem dinheiro.
-
Ainda tem mais? Estou sofrendo com isso...
-
Desculpe, minha querida... se quiser a levo e volto depois...
-
Como assim? Agora que você me envolveu? Conta tudo...
-
A mãe partiu numa manhã fria de inverno, tão fria quanto o coração de Tiago. Somente
a responsabilidade pelos filhos não permitiu que ele também partisse, porém
voluntariamente, atrás da esposa. Não conseguiu pagar todas as suas contas. O
restante da família não tinha muitas posses, e também não simpatiza muito com
ele. Os irmãos sempre foram chamados por ele de preguiçosos... sabe como é...
Então não teve apoio e, diante de tamanha dívida, se escondeu. Ele gostaria de
pagar tudo, mas, falido, pelos seus critérios, não teve outra saída.
-
Então ele não é desta cidade onde estamos?
-
Não... tudo o que lhe contei aconteceu distante daqui. Tiago veio para cá com
os filhos, para uma cidade bem menor, e alugou esta casa humilde. Colocou os
filhos em escola pública e tem trabalhado desesperadamente, agora pensando em
recuperar-se financeiramente, pagar as dívidas, limpar a honra, garantir o
futuro dos filhos, ganhar dinheiro...
-
Sempre o doce vício do dinheiro, não é?
-
Sim... mas não podemos condená-lo. Está fazendo o que acha mais certo. Quanto
era criança não teve uma educação muito diferente disso e, como diz uma amiga
minha que sempre erra os trocadilhos: a árvore nunca cai longe do pé...
-
Mas tem alguma chance dele mudar e fazer diferente, para que um dia os filhos
não repitam o mesmo erro?
-
Claro, mas, lembre-se, a evolução é lenta. Ele já tem méritos em muita coisa,
mesmo tendo fugido dos seus compromissos. Veja, os meninos estão bem vestidos, embora
com roupas simples, e até comprou presentes para eles, mesmo que sejam os mais
baratos que pode comprar.
-
Presentes? Onde estão?
-
Não está vendo, ali, na calçada...
-
O que é isso?
-
Ora, Maria... é uma bola e um peão...
vai me dizer que nunca jogou peão? Vai me dizer que nunca brincou de bola?
-
ehhh... bem, você sabe, desde que voltei tenho trabalhado muito para me
recuperar... me colocaram para trabalhar
com você, que já me ensinou muito, mas não consigo lembrar de quase nada do
passado... Dizem que meu desenlace foi muito traumático e eu mesma criei barreiras
para a minha memória. Então, peão, bola, lembro disso, claro, porém, acho que
também sou de outra geração, não sei... mas vejo que os meninos também não
sabem como brincar...
-
Não sabem mesmo, mas é por isso que viemos... vamos ensinar. Afinal, foi o presente
que o pai pode comprar, e com muito custo...
-
Ensinar? Como dois espíritos vão ensinar dois meninos encarnados a brincar de
peão e bola?
-
Vamos gerar alegria, venha comigo...
José
tomou Maria pela mão e a levou para dentro de casa, onde encontraram Tiago
sentado em um sofá velho, assistindo televisão, Era fácil ver que seus olhos
estavam na tela, mas seu pensamento divagava no passado, enquanto o coração se
enchia de tristeza e saudade.
-
Nossa! É triste ver uma família assim, no Natal – falou Maria, tocada pela
energia do ambiente.
-
Só que não viemos aqui para sentir tristeza, minha amiga. Preciso que me ajude.
Vá até os brinquedos e fique muito feliz ao tocá-los? Sabe como fazer, não é?
Sei que já a ensinaram como magnetizar objetos do plano material.
-
Sim, eu sei. Vou me alegrar como posso, me encher de amor, pensar em Jesus,
pensar em amigos, risos, paz, e tocar os brinquedos... e você, o que vai fazer?
-
Vou tentar mudar um pouco os pensamentos de Tiago. Vou fazê-lo lembrar de
quando era criança e brincava com o pai de peão e bola, vou tocar suas
emoções... o pai era uma pessoa difícil, mas ficaram algumas boas lembranças a
serem exploradas.
Maria precisou ser rápida, porque José era muito
eficiente em influenciar as pessoas. Em poucos minutos Tiago passava por cima
dos filhos e pegava os brinquedos, que logo no primeiro toque já começaram a se
iluminar aos olhos sensíveis do espírito.
-
Ei... pai... como é que você fez isso? – perguntou o pequeno Mateus, que até
aquele momento estava desinteressado e distante, mas que, ao ver o peão girar e
formar desenhos diferentes, ficou muito surpreso.
-
Isso o quê? – Perguntou Tiago - nunca viu um peão rodar? E você aí, ô pé de
vírgula... o fundo da garagem é a trave... gooooollll...
-
Ei! Você chutou antes do goleiro estar na trave... este gol não vale...- gritou
Pedro, correndo para o fundo da garagem e se preparando rapidamente para a
próxima defesa. Um pênalti na final do campeonato!
-
Pai... pai... faz de novo... enrola o fio e joga o peão... – gritou Mateus.
-
Veja Maria – falou José - preste atenção... veja o que acontece com a energia
que você colocou nos brinquedos...
-
Nooossa! Que lindo! Parece que sai luz deles cada vez que são tocados... veja,
quando a bola bate na parede é como se fogos de artifícios explodissem... e o
peão rodando joga centelhas de luz colorida para todo lado...
-
Esta luz é alegria... veja como se espalha e se junta novamente, cada vez em
maior quantidade. Veja como vai grudando no corpo espiritual deles e se infiltrando
para os centros de energia. Veja como se acumulam no coração... daqui a pouco
vão ter uma crise incontrolável de riso por qualquer trapalhada boba que
façam... a alegria limpa a alma, desintoxica o coração...
-
Eu nunca imaginei que podia ser assim... isso é fantástico, como estão felizes
agora! Que mudança!
-
Eles estão e nós também. Perceba que seu mal estar sumiu... Mas venha, vamos deixar
que se fartem de alegria, depois, quando dormirem, vamos encontrá-los do lado
de cá...
-
Ah, é? Que legal! Mas, aonde vamos agora?
-
Descansar, minha querida, espíritos também descansam. A casa já se encheu de
novas energias, o ambiente está limpo e creio que Tiago e os filhos não vão se
incomodar que usemos um pouco a pequena sala – falou José, mais uma vez levando
a amiga pela mão. Assim que Maria sentou no velho sofá, perguntou:
-
Nós podemos fazer alguma coisa também em relação à situação financeira deles?
Não sei ainda até onde vai nossos limites...
-
Não, nós não... ao menos não mais do que já fizemos. A alegria contagia. Tiago
fez uma conexão mental com o passado, com o pai, que também trabalhou muito e
não deu a ele toda a atenção que merecia, perdido nos mesmos doces vícios do
dinheiro. Entendeu que não pode repetir os mesmos erros. Agora vai remoer novos
pensamentos em relação a isso e, dependendo de como começar a agir, a
Providência, se assim podemos chamar o planejamento cármico das nossas vidas,
também agirá a seu favor...
-
Sério? Então é assim que acontece? Um toma-lá-dá-cá?
-
A vida é feita de ação e reação, causa e efeito. Quanto mais amor e honestidade
colocarmos na ação, mais colheremos amor e honestidade na reação. A tão falada
justiça Divina vai bem além de simples prêmios e castigos. Tudo depende
exclusivamente de nós, minha amiga. Coloque ainda nas ações o carinho, o
respeito, o perdão, a paciência, a persistência... e imagine que reação a vida
nos dará... Tiago, com a experiência de hoje, começou a entender que um abraço
vale realmente bem mais que uma moeda. Que um presente caro não substitui o
tempo que doa aos filhos, aos amigos, a quem veio para conviver com ele. Pelo
que sei, há um comprador interessado no terreno onde ficou o edifício
semiconstruído. Ele tem um grande projeto de derrubar tudo, fazer um grande aterro
e construir um shopping no local. Com o dinheiro da venda do terreno ele já
paga todas as contas...
-
Então o problema está resolvido... – falou Maria, eufórica.
-
Não... não está, ainda não... a não ser que você também ache que tudo se resume
a dinheiro.
-
Não... não foi isso que quis dizer... – respondeu Maria, um pouco envergonhada.
-
Vai depender dele se comprometer com os novos ideais que está vislumbrando. É
uma nova chance, não é? Mas, quem sabe como ele vai se comportar no futuro,
quando estiver com tudo pago? Fazer o certo exige muita persistência...
-
Ei! Você me enrolou – falou Maria, ao ver que pai e filhos já estavam deitados
em suas camas - pensei que íamos descansar... eles já foram dormir e estão se
desdobrando. Como o tempo passa rápido aqui!
-
Eu enrolei você com as energias dos bons pensamentos, minha amiga. Quer
descanso melhor do que o equilíbrio que isso nos trás? Mas agora é hora de encontrá-los
do lado de cá... está preparada?
-
Eu teria que estar preparada?
-
Acho que sim – falou José, apanhando o duplo etéreo de um porta-retratos de
cima de uma mesa e entregando-o a Maria, no exato momento que pai e filhos
entravam na pequena sala e ficavam boquiabertos com o que viam.
-
Ei! O que está acontecendo? – perguntou Maria, ainda sem olhar para a foto do
porta-retratos – nossa! Até parece que vocês me conhecem! Eu brinquei com vocês
hoje... mas estava do lado de cá e vocês no lado de lá... não acredito que
vocês me viram...
-
Mãe... mãezinha... não lembra mais da gente? – perguntou Mateus, correndo para
ela e a abraçando.
-
Mãe... mãe... eu? Ai, meu Deus! – falou Maria, agora olhando para a foto dela
abraçada ao marido que tinha nas mãos. Seu coração teve um descompasso e seus
olhos se encheram de lágrimas. Foi como se uma porta se abrisse de repente e
todo o passado que estava escondido atrás dela entrasse por aquela sala.
-
Maria... Maria... que saudade! Que saudade... você voltou... – falou Tiago,
ajoelhando-se no meio da sala, tamanha a emoção.
O
instrutor José deu um passo para trás e seu coração se encheu de alegria quando
todos se abraçaram. Um raio de luz rasgou o ambiente e os envolveu a tal ponto
que José quase não mais os via. Seus olhos, também inundados, fazia a luz se
espalhar e se perder no meio de tanta alegria. Então, no meio da luz ele viu
que Maria lhe estendia a mão e o chamava. Percebeu pelo sorriso dela que também
havia se lembrado dele. Aproximou-se lentamente e abraçou a todos. Tiago, ao
perceber que havia outra pessoa junto com eles, separou-se um pouco da esposa
que retornava da morte para encher-lhe a vida de esperança, e olhou para José.
Mais uma vez a emoção fez bambearem suas pernas e se ajoelhou. Entre soluços,
falou:
-
Pai! Meu pai... você também veio...
- Sim, meu filho... vim lhe desejar um Natal de paz...