sábado, 11 de dezembro de 2010

NATAL DE 2010


Algumas pessoas falam em acreditar em Jesus. Acho estranho. É como dizer: você acredita no José? No João? Na Lucia? É estranho pensar em acreditar em Deus ou em Jesus. Um é criador, outro criatura, ambos existem, claros e óbvios como o outro dia virá. Seus atributos, ou poderes que atribuímos a eles, podem variar de acordo com as nossas necessidades. Ações de cada um são realmente discutíveis mas, ambos, não se acredita ou deixa de acreditar e sim se entende. Também não se aceita. Aceitar é compatível com fé cega, não raciocinada.
Eu tinha 10 anos quando ele disse, com lágrimas nos olhos:
- Agora seremos só nos dois... só nos dois... você tem que me ajudar - depois se ajoelhou na minha frente e por muito tempo fiquei sentindo seu corpo chacoalhar com os soluços que ele tentava conter. Coloquei minha mão nos seus cabelos e fiz um carinho, depois respondi:
- Eu vou te ajudar... vou estar sempre com você.
Eu tinha 10 anos e meu pai 34. Nem tinha como saber que estava mentindo. Precisei, ou julguei precisar, viver minha vida quase o tempo todo longe dele.
Uma semana antes do Natal minha mãe perguntou o que eu queria ganhar. Fiz uma lista. Dinheiro não faltava. Embora eu não soubesse a diferença entre ter mais ou menos dinheiro. Vídeo game, mochilas, tênis, bicicleta nova, celular. Você é muito novo pra isso! Patinete a motor. Ei! Já tá abusando! Pedi muita coisa. No dia do natal ganhei tudo, na verdade, um pouco mais.
Todo ano ela gostava de acender uma vela coruscante no alto do pinheiro enfeitado. Daquelas que vai queimando e soltando faíscas coloridas. Apagava a luz e deixava que as faíscas iluminassem a sala de ilusão de alegria. Todo ano ela fazia isso e eu gostava daquela pequena explosão de cores, até mais do que os presentes. Presentes eu podia ganhar qualquer dia, natal ou não. Tinha sido assim nos outros anos. Havia uma curta oração decorada pra desencargo de consciência e depois eles davam os presentes. Durante o dia davam presentes também para os empregados do condomínio, para a faxineira. Davam presentes maravilhosos para amigos e parentes. Davam dinheiro para amigos que tinham atividades sociais em abrigos, asilos, hospitais. Dinheiro! Como fica fácil fazer caridade! Nunca vi as crianças que eram ajudadas, nem os velhinhos, nem os doentes. Nunca soube que a vida toma rumos inesperados. Nunca vi a tristeza, ou alegria, ou revolta, ou esperança dos seus olhos. Eu estava aprendendo a acreditar em Jesus, em Deus, assim como meus pais, mas sem entendê-los.
O jantar de natal foi regado a vinhos, risos e desperdícios. A vida era uma esteira colorida que rolava por paisagens límpidas e sem dor. Eles eram bons, deram o que sabiam dar.
- Agora seremos só nos dois... só nos dois...
O semáforo fechou. A manhã do dia de natal estava calma e crianças brincavam com seus novos presentes. A rua estava quase sem nenhum movimento. Os dois conversavam sobre a viagem de janeiro. Eu vi aquele menino passar pelo lado do carro e parar na janela dele. Não podia ter mais de 15 anos. O vidro estava aberto. Achei que era uma brincadeira. Que a arma era um presente de natal que o menino havia ganhado na noite anterior. A carteira... a carteira, porra! Meu pai arrancou. Ouvi o barulho e vi ele se encolher, depois olhou para trás. Eu também olhei. O menino já não estava mais lá. Ele gritou. Foi um susto. Depois ele gritou de novo quando olhou para minha mãe e correu para o hospital gritando o nome dela, mas o tiro havia entrado pelo pescoço. Foi instantâneo. Eu tinha 10 anos e não sabia o que era dor.
- Agora seremos só nos dois.
Muitos dias depois entrei no meu quarto e os presentes estavam todos lá. Acharam que eu tinha enlouquecido. Coitadinho... mas é criança ainda, vai superar! Joguei tudo pela janela.
Tive muito ódio daquele Deus, daquele Jesus que diziam ter renascido no dia que minha mãe morrera. Por quê? A dor inesperada, de surpresa, quebrando todas as barreiras de vidro onde haviam me trancado, demorou muito a ensinar. No começo, apenas gerou revolta. Era o que eles haviam aprendido também e pensavam que agiam certo. Tenho a impressão que meu pai nunca se recuperou de fato. Vendeu a casa, perdeu o emprego. Tentou outro, e outro. A riqueza se foi. A dor veio de repente e ficou por muito tempo. Por muito tempo. Por todo o tempo em que odiei Deus e Jesus. Perdurou quando tentei acreditar neles novamente. Dizia a mim mesmo que acreditava, mas a dor permanecia. Então tentei provar que era tudo besteira. Que eles eram o ópio necessário dos infelizes. A dor continuava.
- Só nos dois.
Ele tinha razão. Todas as pessoas que se beneficiaram do seu dinheiro solto, na verdade, nem sabiam quem ele era. Todos os amigos que agiam no mesmo módulo de segurança existencial que ele, fizeram de conta que tentaram ajudar, para ter respaldo em se afastar sem culpa. Em muita gente a caridade é uma vaidade. Muita gente ajuda em troca de reconhecimento, bajulação, respaldo para fugas, sem que a consciência ligue os alarmes. Que grande engano! Um dia sempre a consciência dispara os alarmes, um por um.
Terminei a faculdade e fiz todas as pós graduações possíveis. Ele esteve sempre junto. Eu não estive sempre junto com ele. Havia mentido. O ódio era um escudo para minhas vaidades. A dor era um cobertor macio onde eu escondia meu egoísmo. No fundo eu o achava um fracassado, porque todas as minhas perdas passaram por ele.
Um dia meu filho me pediu uma bicicleta e minha esposa correu para a internet fazer uma busca de melhores preços. Dinheiro não sobrava como antes. Então, de repente percebi. A compreensão caiu sobre mim como uma tempestade súbita. Ele tinha 10 anos. Faltava uma semana para o natal e ele, mesmo que não tivesse todo o dinheiro que eu aos 10 anos, vivia cercado por muros de vidro fino, assim como acontecera comigo.
Eu estava de férias aquela semana. Pegamos sua bicicleta velha e reformamos, juntos. Depois fizemos uma devassa no seu quarto e reunimos uma grande caixa de brinquedos e roupas, dele, minhas, da mãe. Chamei meu pai e fomos juntos levar a bicicleta reformada num abrigo, assim como as roupas usadas e boas dele. Eu havia entrado em contato e sabia dos horários de visitas. Meu filho ficou lá, um bom tempo brincando com outros meninos, enquanto eu, meu pai e minha esposa conversávamos com a diretora sobre uma maneira de ajudarmos mais corriqueiramente. Fizemos o mesmo no asilo e levamos alguns presentes para crianças internadas no hospital, depois brincamos com elas.
Aprender é o caminho. Todos os fatos da vida acontecem numa sucessão ideal para o nosso aprendizado. Basta olhar para dentro e veremos o espelho onde se refletem as nossas principais dificuldades do lado de fora. Basta olhar para fora e nas dificuldades repetidas vamos encontrar nossos principais medos e defeitos. Aprender é o caminho, crescer a conseqüência. Como não entender que Deus fez assim? Que força maravilhosa é essa chamada Deus, que ordenou tudo com tamanha perfeição. Causa e efeito, consciência, ação e reação, destino. Como não perceber que Jesus tentou nos ensinar isso? Acreditar, somente? Não, entender.
Na noite de natal ele ganhou a bicicleta que havia pedido. É difícil mesmo dizer não para um filho. Porém, o maior presente quem ganhou fui eu. Ele me abraçou demoradamente, depois abraçou a mãe e o avô. Foi a primeira vez que fez isso. Eu ganhava abraços e abraços dos meus pais, mas não lembro de ter dado um sem que me pedissem. Havíamos começado a quebrar as barreiras de vidro. A bicicleta não era mais importante que a nossa presença.
Meu pai diminui a luz e pediu para que fizéssemos uma oração. Fiquei envergonhado. Nem sabia mais o que era isso. O ódio havia passado e eu começava a entendê-los, mas ainda não pensava em me comunicar com eles. Não foi nem a dor, nem o que aconteceu no final da oração que completou o entendimento. Não. Aquilo foi só mais um presente, uma visita. A vela acendeu no alto da árvore e, com suas luzes coruscantes, encheu de risos e lágrimas nossa noite de natal. Acendeu sozinha. Meu pai cobriu o rosto com as mãos e chorou. Meu filho e minha esposa ficaram me olhando, tentando entender que truque eu havia feito. Eu poderia ter dito a eles que o truque foi de Deus, quando criou todas as condições necessárias dentro da vida para que entendêssemos a vida, e Ele. Que aquela era sua obra. Eu poderia ter dito que o truque foi de Jesus, nosso irmão mais velho e que há tanto tempo vem nos mostrando caminhos para entendermos o Pai. Mas não disse nada. Agora eu havia entendido que haveria tempo para ele aprender e crescer, sabendo que os presentes materiais são alegrias passageiras, mas um abraço tomado de amor é eterno. Sabendo que ele aprenderia que a dor nos visita quando resistimos em aprender, ou modificar o que ainda temos de errado. Sabendo que assim, ele realmente jamais estaria sozinho.
Meu pai me abraçou com o rosto molhado de lágrimas, e falou no meu ouvido:
- Não seremos mais só nos dois, meu filho, não seremos mais...

22 comentários:

Emilia disse...

Caro Poeta,

Bom dia,

Num dia distante, numa reunião religiosa de estudo e reflexão, uma pessoa me disse que preferia não aprender/conhecer. Não saber - para não ter responsabilidades.....

Este seu Natal de 2010 tem a cor da maturidade. Esta mesma cor laranja que está no título. Está lindo e profundo. E ensina. E indica um caminho. E se revela fruto do próprio caminho. E também é parte do caminho. Caminhemos portanto.
Um forte abraço e um grande e feliz natal, querido amigo poeta
Emilia

mauro camargo disse...

sempre é muito bom ver vc por aqui. A poesia tem algo de divino. Ela também precisa sem conhecida/entendida... tive o grande prazer de conhecer/entender a sua.
feliz natal ao teu redor.

Hélio Jorge Cordeiro disse...

...é por essas e outras que eu fico, sempre que posso, à sombra de bons pensamentos. Fuiquemos nela neste Natal e fim de ano, meu caro Mauro.

mauro camargo disse...

na sombra, de passo miudo, falando baixo, e comendo pelas beiradas... uma boa pedida.

Grasi disse...

Este conto foi um grande presente! Foi fundo no sentimento.
Beijo grande

mauro camargo disse...

por falar nisso... o que eu vou ganhar de presente mesmo?

ehehehehehe

Sandra Knoll disse...

resolvi ler...e em uma certa hora sabia o que estava por vir!
Os teus contos de Natal, hein? Sempre arrancando lágrimas da gente.
Bom Natal.

mauro camargo disse...

poxa! estou assim evidente? Não consigo mais surpreender?

eheheh

Romacof disse...

Bonito e bem achado! Poético e luminoso. Você sabe que meu agnosticismo não renega o altruísmo como uma necessidade evolutiva sintrópica (Pierre em breve vai dizer melhor!). Pena que a realidade faça cacofonias na poesia. Uma colega voltou do Rio abandonando a Fio Cruz. "Quando você começa a ter medo das crianças é por que ali não é um bom lugar pra se viver!" ela disse. E nós impotentes para fazer a mudança. Acho que só nos resta começar... Um Feliz Natal Dom Camargo.

Em tempo: No momento de sua visita o papo sobre o Natal Parlamentar estava no prelo. Agora já está no Cágado a espera de críticas.

Em tempo: fiz o teste do Aspartane e não posso comungar com o amigo. Talvez por que na minha idade as dores causadas pelo tempo, pelo açúcar e pela sinvastatina sejam maiores!

mauro camargo disse...

sabe que sobre o aspartamen, não aconteceram melhoras depois das relatadas, porém, aquelas se mantiveram. O que noto com mais clareza é uma diminuiçao na votande de comer açucar, porém, isso é mesmo óbvio, porque, por mais que eu use pouco açucar comum, passou a existir na dieta. O restante mantém. EStou esperando um tempo maior para uma nova avaliaçao.


mudanças? Do jeito que a coisa anda, estou acreditando que está valendo mais é ficar ligado e disposto a produzi-las...

um natal cheio de paz para todo o teu meio de influência, Dom Romacof

Romnacof disse...

Dom Camargo! Tomei a liberdade de citá-lo e linká-lo no Cágado Xadrez no 2º post sobre a Farra do Peru. Leia-se canalhices para lamentar, ou parlamentares, conforme o voto de cada um.

mauro camargo disse...

linkado e lisonjeado...

Anônimo disse...

Belíssimo conto, Camargo. Tudo nessa vida é mesmo uma oportunidade de aprendizado. E, como acontece nessas horas, aprender depende fundamentalmente da vontade e comprometimento do aprendiz. Ensinar é apenas um lado da moeda...
Abraço e um felicíssimo Natal pra você e sua família.
Mônica

mauro camargo disse...

obrigado Monica... muita paz para vc e todos que a cercam. E que no ano que vem vc continue nos brindando com a riqueza do Crônicas...

LdS disse...

Pois cá vim e gostei. A construção de cada um passa exactamente pelo que dia a dia nos chega. E esse esforço para construir, esse "verso l'alto" é o que está reflectido na sua narrativa de Natal. A meta de cada um de nós é um mistério - mas o que é certo é que para ela caminhamos. Bom,excelente mesmo, conto de Natal. Outra questão - e é a mesma do outro lado do espelho - é o que nos leva a isso. A peregrinação é uma condensação disso mesmo num itinerário tangível. Mas o que nos leva a caminhar e, no caminho, a colher mais tarde ou mais cedo os frutos? Mesmo quando de início os desprezamos? Aprender é isso, viver é isso. Proponho-lhe outro cenário: a história do que atirou sobre uma mãe numa família feliz. Talvez essa história também nos ensine algo. Um Bom Natal e um Feliz Ano - e um grande abraço do outro lado do Rio Atlântico.

romacof disse...

Feliz Natal para você e sua família, Dom Camargo. Que o saco do Papai Noel seja suficientemente grande para colocar lá dentro tudo que você merece. Que exista quem pode nos compreender. Que possamos compreender quem existe.

mauro camargo disse...

boa idéia caro amigo de lá do lado de lá do atlântico... vou pensar com carinho. Obrigado pela visita e pelo ótimo comentário.

mauro camargo disse...

obrigado Dom Romacof. Que possamos nos envolver sempre na mesma energia. Um natal de muita paz.

Leene Marques disse...

O Natal 2010 se foi.... mas ainda da tempo de refletir e aplicar este conto em Nossas Vidas. Parabénsssss!

mauro camargo disse...

obrigado lenne... virou o ano e eu ando longe do blog... logo volto pra outras postagens.

Unknown disse...

mauro sou josé augusto sonda de rebouças como faço para entrar em contato com você?

mauro camargo disse...

olá José Augusto, vc pode usar o mail maurocbc@gmail.com