quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Gavinhas




Ouvi os passos miúdos pelo quarto e a cortina balançou suave. Dez anos de uma solidão compartilhada. Todos que estamos ainda juntos ficamos solitários sem seu riso. Encosto o rosto no vidro da janela e a vejo vindo pela rua, trazendo seus livros, sonhos e soluções para nossas ansiedades. João casou e mora longe, mas vem sempre que pode. Tereza passou no vestibular e fica ainda mais 5 anos comigo, quem sabe? Tiago está com amigdalite. João foi o que mais sofreu. Tinha 16 anos. Onde coloquei a cartela de antiinflamatório? Tiago dorme e esquece de tomar. Por falar em esquecer, esqueci de levar o carro pra revisão e Tereza esqueceu que ando esquecido, não me lembrou que tinha que levar. Dez anos de uma solidão compartilhada, e esquecimentos, do que se pode esquecer. Dez anos de lembranças diárias, horárias, do que jamais vamos esquecer. Faz dois dias que está chovendo e tem uma pilha de roupas pra lavar. A manchinha da pele esta coçando muito, ela falou. Posso marcar o médico? Ah, não, esta semana não, tenho que preparar tantas aulas. Vamos marcar o médico? Esta semana também não posso meu querido, muitos alunos ficaram para recuperação. A ferida parou de coçar? Sim, quer dizer, não coça tanto... mas dói um pouco. Metástases. Ela sorriu ao apertar minha mão antes da última cirurgia. Eu vou voltar, meu querido, eu vou voltar... mesmo que este corpo não resista, eu vou voltar. Tereza esqueceu de levar o cachecol e a chuva trouxe o frio. A noite vai ser fria e Tiago ainda não melhorou da garganta, além do mais, agora está com tosse. João ligou dizendo que pretendem ter um filho, ou filha. Aline parou com o anticoncepcional. Dez anos de solidão compartilhada. Quantas vezes ela falou que não queria ser avó antes do tempo! O médico segurou meu ombro e seus olhos molhados dispensaram as palavras. Foi como uma flor que o ramo não conseguiu prender. O vento do destino soprou mais forte. O vento do destino arrancou as gavinhas que me prendiam ao sonho de amá-la para sempre, onde quer que estivéssemos. Fiquei balançando no tempo, sem sustentação. Parece que o destino não entende muito de amor. Meia noite. Tereza beijou o namorado e subiu, Tiago acordou com a tosse e João está embalando o sonho de multiplicar a vida. No meu colo o livro está pendente da mão espalmada, também perdida num carinho esquecido no tempo. Você trouxe água? Já escovou os dentes? Quer esse travesseiro que é mais alto? Esta temperatura está boa pra você... pego mais uma coberta? O sono bate, a mão escorrega e os passos miúdos percorrem o quarto. A cortina balança suavemente com o vento do passado. O raciocínio mistura fatos e possibilidades. Uma luz acende na sacada, esqueci a porta aberta. Que luz? A lâmpada da sacada está queimada faz tempo. Não é nada, só estou sonhando. A porta abre-se um pouco mais, mas não tem vento. Tiago tosse. Tereza beija minha testa e diz pra eu dormir na cama. Ela não viu a luz na sacada? Apagou a luz do quarto, mas está ainda mais claro. Fechou a porta, mas não viu que a da sacada está escancarada? Sonho? Quase nunca sonho com ela. Eu tento, peço, rezo... não consigo. A luz aumenta, como uma grande lâmpada que se movimenta. Entra pela porta largamente aberta e me domina, me aquece. Acordo. Levanto. Não, ainda estou sentado ali, no sofá de leitura. Mas estou de pé. Ela sorri, parada em minha frente. O coração dispara. Eu não disse, meu querido, que eu voltaria? Aquele corpo se foi na voragem do tempo, todos os corpos de carne e osso se vão, mas nós, que nos amamos, nunca vamos junto com eles. Venha meu querido, teu corpo ainda é forte e vai demorar a partir, mas precisa descansar. Venha meu querido, essa noite é um presente para nós... vamos caminhar um pouco, não temos muito tempo, logo já vem o dia... mas antes, deixa eu ver se o Tiago está com febre, não saia daí... 

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4 comentários:

Paulo Guimarães disse...

Muito bom!... E me fez relembrar de alguns reencontros que, pelo menos em nível consciente, nunca ocorreram em minha vida!...

mauro camargo disse...

obrigado Paulo... as pessoas que se gostam permanecem energeticamente unidas.

Anônimo disse...

Mauro. Vi esse post como um depoimento íntimo. Fiquei por um tempo sem me sentir no direito de comentar – como um estranho no ninho – e depois considerei que estando na rede me estava sendo dado o direito de comentar. Achei o texto plasticamente bem feito, sem linearidade temporal, expondo uma experiência afetiva do autor, com nuances que permitem deduzir referência imateriais à uma vivência ou à uma esperança. Permite que se tenha a oportunidade de experimentar a emoção do autor, e cria uma empatia solidária embora se desconheça os fatos. Um abraço.

mauro camargo disse...

realmente, alguns textos são complicados de se comentar. Creio que esse seja um deles. Obrigado pela crítica precisa. Na verdade, a editora me pediu alguns textos pequenos (pequenos contos ou crônicas) que ela usará em campanhas publicitárias. Já fiz alguns e este é um deles, mas é totalmente ficcional. Não vivi esta experiência de forma ampla. Coisa de ficcionista, como o caro amigo também é... e, como sabemos, onde termina a realidade e começa a ficção?