Ouvi os passos miúdos pelo quarto
e a cortina balançou suave. Dez anos de uma solidão compartilhada. Todos que
estamos ainda juntos ficamos solitários sem seu riso. Encosto o rosto no vidro
da janela e a vejo vindo pela rua, trazendo seus livros, sonhos e soluções para
nossas ansiedades. João casou e mora longe, mas vem sempre que pode. Tereza
passou no vestibular e fica ainda mais 5 anos comigo, quem sabe? Tiago está com
amigdalite. João foi o que mais sofreu. Tinha 16 anos. Onde coloquei a cartela
de antiinflamatório? Tiago dorme e esquece de tomar. Por falar em esquecer,
esqueci de levar o carro pra revisão e Tereza esqueceu que ando esquecido, não
me lembrou que tinha que levar. Dez anos de uma solidão compartilhada, e esquecimentos,
do que se pode esquecer. Dez anos de lembranças diárias, horárias, do que
jamais vamos esquecer. Faz dois dias que está chovendo e tem uma pilha de
roupas pra lavar. A manchinha da pele esta coçando muito, ela falou. Posso
marcar o médico? Ah, não, esta semana não, tenho que preparar tantas aulas.
Vamos marcar o médico? Esta semana também não posso meu querido, muitos alunos
ficaram para recuperação. A ferida parou de coçar? Sim, quer dizer, não coça
tanto... mas dói um pouco. Metástases. Ela sorriu ao apertar minha mão antes da
última cirurgia. Eu vou voltar, meu querido, eu vou voltar... mesmo que este
corpo não resista, eu vou voltar. Tereza esqueceu de levar o cachecol e a chuva
trouxe o frio. A noite vai ser fria e Tiago ainda não melhorou da garganta,
além do mais, agora está com tosse. João ligou dizendo que pretendem ter um
filho, ou filha. Aline parou com o anticoncepcional. Dez anos de solidão
compartilhada. Quantas vezes ela falou que não queria ser avó antes do tempo! O
médico segurou meu ombro e seus olhos molhados dispensaram as palavras. Foi
como uma flor que o ramo não conseguiu prender. O vento do destino soprou mais
forte. O vento do destino arrancou as gavinhas que me prendiam ao sonho de
amá-la para sempre, onde quer que estivéssemos. Fiquei balançando no tempo, sem
sustentação. Parece que o destino não entende muito de amor. Meia noite. Tereza
beijou o namorado e subiu, Tiago acordou com a tosse e João está embalando o
sonho de multiplicar a vida. No meu colo o livro está pendente da
mão espalmada, também perdida num carinho esquecido no tempo. Você trouxe água?
Já escovou os dentes? Quer esse travesseiro que é mais alto? Esta temperatura
está boa pra você... pego mais uma coberta? O sono bate, a mão escorrega e os
passos miúdos percorrem o quarto. A cortina balança suavemente com o vento do
passado. O raciocínio mistura fatos e possibilidades. Uma luz acende na sacada,
esqueci a porta aberta. Que luz? A lâmpada da sacada está queimada faz tempo.
Não é nada, só estou sonhando. A porta abre-se um pouco mais, mas não tem
vento. Tiago tosse. Tereza beija minha testa e diz pra eu dormir na cama. Ela
não viu a luz na sacada? Apagou a luz do quarto, mas está ainda mais claro.
Fechou a porta, mas não viu que a da sacada está escancarada? Sonho? Quase
nunca sonho com ela. Eu tento, peço, rezo... não consigo. A luz aumenta, como
uma grande lâmpada que se movimenta. Entra pela porta largamente aberta e me
domina, me aquece. Acordo. Levanto. Não, ainda estou sentado ali, no sofá de
leitura. Mas estou de pé. Ela sorri, parada em minha frente. O coração dispara.
Eu não disse, meu querido, que eu voltaria? Aquele corpo se foi na voragem do
tempo, todos os corpos de carne e osso se vão, mas nós, que nos amamos, nunca
vamos junto com eles. Venha meu querido, teu corpo ainda é forte e vai demorar
a partir, mas precisa descansar. Venha meu querido, essa noite é um presente para nós... vamos caminhar um pouco, não temos muito tempo, logo já vem o
dia... mas antes, deixa eu ver se o Tiago está com febre, não saia daí...
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