Foi uma grande surpresa quando eu soube,
lembro ainda como se fosse hoje. Eu estava sentado no lado da escada do museu quando ouvi a conversa. Seu Nestor contava pra Dona Lucia que já tinha pedido
várias vezes para trocar aquela fechadura e ninguém dava conta, era só enfiar
qualquer chave nela que abria. O mais importante é que eu tinha uma qualquer
chave.
Eu conhecia cada
detalhe daquele museu. Com as mãos para trás, como exigia seu Nestor, quase
todo dia eu passeava lá por dentro. Não tinha nada de muito valor, como ele
dizia, o valor era histórico, mas eu me deslumbrava com o grande relógio de
pêndulo, a máquina de escrever do primeiro delegado da cidade, a vitrola, com
aquele grande ouvido saindo dela e, principalmente, o imenso piano de cauda,
com esculturas de anjos entalhadas na sua madeira É claro que eu tinha uma qualquer chave!
Minha casa, se aquilo
podia ser chamado de casa, ficava bem longe do centro da cidade e, mesmo sendo
verão, as madrugadas andavam frias. Além do mais, o espaço era pouco para
dividir entre sete pessoas, isso quando meu pai não passava da conta no boteco
e botava todo mundo pra correr.
Seu Nestor ia embora
perto das sete da noite, só que, nesse horário, ainda tinha muita gente ali
pela frente. Estávamos perto do Natal, por isso o comércio estava ficando
aberto até mais tarde. Perto da meia noite eu colocava minha qualquer chave na
fechadura e... não deu outra, só que o rangido daquela porta de manhã, quando
seu Nestor abria o museu, era um sussurro comparado ao grito desesperado que
ela fez ouvir em toda a rua solitária. Com certeza, no outro dia, eu reclamaria
do descaso, afinal, o que custa para prefeitura um pouquinho de graxa. Por
sorte o barulho não chamou a atenção de ninguém, entrei como um raio cortando a
noite e fechei a porta atrás de mim. Assim descobri que, se abrisse e fechasse
ela rápido, quase não fazia barulho.
Ninguém havia me falado como era escuro aquele
museu de noite. Eu não conseguia enxergar absolutamente nada. Nem sei quanto
tempo tive que ficar ali, fazendo de conta que estava esperando para me
acostumar com a escuridão, mas, na verdade, morrendo de medo de dar um passo lá
dentro.
Sabia que a menos de
três metros de mim havia outra porta. Enchi o peito, prendi a respiração e fui.
Outro rangido, parecendo um gato miando pra lua. Era tarde para recuar, eu
achava. Lá, no final do grande salão, no canto direito, atrás do antigo púlpito
da Igreja Matriz, estava meu novo leito: o grande piano de cauda, coberto por
um grande pano branco, meu lençol, travesseiro e cobertor.
Dobrei-o em três,
deitando sobre duas partes e usando a terceira pra me cobrir. Uma cama de
príncipe. Ainda fiz mais uma dobra e tive um travesseiro, um pouco baixo, mas,
um travesseiro, pra quem nunca tinha tido um, estava ótimo.
A noite estava
especialmente silenciosa e eu já havia me acostumado com a escuridão, podendo
divisar quase todas as peças do salão principal do museu e o grande cortinado
de seda que havia sido da casa do fundador da cidade. Durante o dia, era muito
bonito de ver o tecido lustroso, com babados e franjas espalhadas em inúmeros
panos, mas, no meio daquela escuridão, aquele cortinado parecia outra coisa.
Virei de costas pra ele e foi pior, era como se aquelas cortinas fossem voar e
me atacar por traição. Voltei-me novamente e, depois de quase meia hora sem
conseguir tirar os olhos daquela cortina de seda, resolvi enfrentar o fantasma.
Fui até ela e a toquei, com uma valentia que nem eu imaginava que tinha.
Abracei-me a ela, até que ficássemos amigos.
Voltei ao meu leito
Divino e, de longe, acenei para ela. Por que fiz isso!?
É claro que não acreditei no que eu havia acabado de ver: ela acenou-me
também. Impossível, seu Nestor deveria ter deixado aberto a janela e o vento...
que vento? Não tinha vento nenhum na rua. Por mais que eu tentasse me mexer e
terminar meu ato de deitar, interrompido no meio, não conseguia. O pano maior
da cortina havia me acenado e não havia nenhum vento.
Quando meu braço
esquerdo começava a doer por estar sustentando, sozinho, todo peso do corpo,
outra surpresa: do meio do cortinado ele apareceu, com um impecável terno
branco e chapéu de filme de malandro antigo. Olhou-me e sorriu, creio que o
sorriso mais amigo que um moleque de rua já tenha recebido, depois, veio em
minha direção.
O braço esquerdo não
suportou mais, nem eu, ambos caímos, desacordados. Graças a Deus!
***
Voltei a mim num
salto, quando soaram as primeiras notas da música: gingo bel... gingo bel... e,
estarrecido, vi que era ele quem tocava o piano, ainda sorrindo para mim e
parecendo estar viajando na música que tocava.
Mesmo com aquele
sorriso eu queria correr, fugir dali aos gritos desesperados, alardear a cidade
toda, bater na porta do seu Nestor, avisar o prefeito, a guarda urbana, seu
Manequinha padeiro, o padre... mas, não conseguia. Minha voz não saía, minhas
pernas pareciam de pedras, o máximo que, creio, consegui fazer, foi emitir um
grunhido, como um cachorro rosnando dormindo. Ele deve ter me ouvido e acho que
foi pior, parou de tocar e parou de sorrir, olhando-me, pela primeira vez,
seriamente. Tirou o chapéu e colocou-o sobre o piano, depois me perguntou, com
a maior naturalidade:
—
Eu o assustei?
Ah! Seu eu
conseguisse emitir algum som naquela hora! Daria a ele a resposta merecida!
Como eu me mantinha calado, com os olhos quase saindo da cara e de boca aberta,
acho que ele entendeu minha resposta muda. Colocou o chapéu, novamente, e
falou;
—
Vou tocar outra música, para acalmá-lo.
“Noite feliz...
noite feliz... ó Senhor, Deus de amor, o menino nasceu em Belém...
Agora ele
tocava e cantava, olhando-me de maneira tão delicada que, aos poucos, meus
músculos foram se soltando.
— Que...
que... quem... é... vo... você? —
consegui gaguejar, quando ele terminou de tocar e ficou me olhando, como se
esperasse que eu aplaudisse. Ele brincou um pouco, fazendo sons bonitos no
teclado, depois parou e respondeu:
— Eu sou o dono deste piano...ou fui...
— Dono! Como assim? Seu Nestor me falou que
esse piano foi doado ao museu e que tem mais de 150 anos.
— Nossa! Já faz tanto tempo assim? Como o
tempo passa rápido!
— O que você quer dizer com isso?
Ele tirou
novamente o chapéu e o colocou no mesmo lugar sobre o piano, depois suspirou
fundo, com o olhar perdido, como se estivesse longe no tempo, então respondeu:
— Papai
mandou este piano vir da Itália, de presente de Natal para mim. Eu o esperava
todos os dias na beira do cais. Toda a embarcação que aparecia no horizonte,
meu coração disparava. Na cidade só havia o velho cravo da Madre Maria, com
quem eu tinha tido aulas. Ainda lembro, com tristeza, o dia que o Navio
Imperial entrou pela barra do rio, bem na véspera de Natal. Eu sabia que ele
estava lá dentro. Lamento até hoje minha ansiedade...
— Mas, o que
aconteceu?
— Quando os carregadores tiravam a grande caixa
pela ponte de desembarque, um deles escorregou e a caixa veio abaixo,
escorregando pelas tábuas húmidas, da garoa que caía. Eu tinha 14 anos e
imaginei que poderia segurá-la sozinho. Que besteira! Com a batida eu voei
longe e fui cair dentro do rio, com a maré vazante. Tenho certeza que me
procuraram muito, mas...
— Então...
Ele olhou-me
e, mesmo estando apavorado, não pude deixar de ficar com pena. Meu Deus! Eu,
com pena de um fantasma!
— Quando eu
me recuperei, fiquei sabendo que meu pai, como era de se esperar, tinha ficado
quase louco com minha morte, não deixou nem que abrissem a caixa e doou-o à
Igreja matriz. Madre Maria não conseguia mais tocar e não havia na cidade,
naquela época, quem o soubesse. Por muito tempo este piano não foi tocado. Como
eu tenho me comportado bem, na época de Natal, me permitem vir aqui e
tocá-lo...
Ele parou de
falar, colocou o chapéu e tocou outra música que eu não conhecia, mas, que era
maravilhosa. Um fantasma morto há 150 anos tocava piano para mim, no meio da
noite, dentro de um museu, e eu tinha perdido totalmente o medo.
— É uma
Sonata de Bach, uma das minhas preferidas. Se me permite, vou continuar
tocando, tenho que ensaiar para a apresentação de amanhã...
— Que apresentação?
— Amanhã é véspera de Natal. Eu me apresento
aqui, para um grande número de convidados.
— Aqui?
— Sim, por que a surpresa?
— Quer dizer que amanhã isso aqui vai tá cheio
de fantasmas?
— Se você prefere chamar a gente assim... vai
ter bastante gente importante aqui amanhã, e você já está convidado.
— Mesmo? Eu posso vir?
— O convite está feito, agora, chega de
conversa que eu tenho que ensaiar...
Ele tocou
muito, músicas lindas, entre elas, algumas musiquinhas de Natal que eu
conhecia. Dormi embalado num som que só podia vir do céu.
***
O ruído da porta de frente me
fez pular, num único salto, de cima do piano e esticar, como um raio, o grande
pano branco sobre ele. Agora não adiantava tentar sair, Seu Nestor já vinha
pelo salão principal, observando se estava tudo bem. Fui para trás
do púlpito, para que ele não me visse e, quando ele virou-se, me viu, de mãos
para trás, olhando o grande piano de cauda, com seus anjos entalhados:
— Você já está por aqui, moleque? Nem vi você
entrando.
— Acordei cedo hoje...
— E já tomou seu café da manhã?
— Eh... claro!
Ele sorriu e
tirou do bolso uma moeda de um real, colocou sobre o piano e continuou olhando
as outras peças do museu. Seu Nestor era uma pessoa boa, muitas vezes me pagava
uma média com pão e manteiga. Como eu estava por ali, logo cedo, imaginou que
era isso que eu queria. Dei sorte, escapei de ser pego e ainda ganhei meu café
da manhã.
Antes de
sair, ainda olhei para o piano e para o grande cortinado de onde meu amigo
fantasma tinha saído. Acabei não perguntando o nome dele, mas, que diferença
isso fazia?
Sentei na
escada do museu e fiquei olhando para moeda de um real, alguma coisa estava me
entristecendo. Era véspera de Natal e a cidade já estava fervilhando. Era um
dia ótimo para ganhar uns trocados: muitos carros para cuidar, carrinhos de
supermercado para empurrar e muitos outros bicos. Natal passado deu pra fazer
50 reais na véspera. Pena que meu pai descobriu e boa parte disso virou
cachaça.
Eu nunca era
de ficar me lamentando daquela vida que levava. Tinha treze anos e vontade de
estudar, mas, se estudasse, quem levava um pouco de grana pra minha mãe, que
era gente boa e gostava muito de mim?
Nas
redondezas, os comerciantes e fregueses me conheciam, muitos me ajudavam com
roupas e comida. O seu Lau me deixava dormir no sofá do fundo da garagem dele,
desde que eu ficasse de olho na casa, mas, as molas já estavam furando o tecido
e os gatos da dona Neusa passavam o dia nele, o que não deixava um cheirinho muito
agradável. Mesmo assim, dava pra ir levando, ainda mais agora que eu tinha um
amigo fantasma. Será? Será que não foi apenas um sonho? Claro que
sim, só podia ser um sonho, eu estava assustado com o local, dormi e
transformei meu medo em sonho. O dia, os carros, as calçadas e pessoas, agora
me davam a certeza da realidade. Como eu pude acreditar ser verdade? Se fosse
algum fantasma tocando piano, como é que outras pessoas não iam ouvir e achar
estranho?
O cheirinho
de café da padaria da esquina veio me buscar e pedir a minha moeda de um real,
o valor exato da média com pão e manteiga (ao menos era o que me cobravam). Não
sei se foi o sonho ou a tristeza que me invadia, que me fez atravessar a rua
distraído, só me dei conta do que fazia quando ouvi o grito do pneu e vi o capô
do carro vermelho muito próximo de mim. Felizmente o motorista foi de uma
perícia incrível, só deu tempo de eu me encolher e ele conseguiu desviar, mesmo
assim me bateu de leve e caí. O carro parou em seguida, mas eu levantei rápido
e corri dali, não estava afim de ouvir sermão, principalmente porque o culpado
era eu, por andar distraído.
Quando cheguei na padaria descobri que tinha
perdido a moeda de um real. Que pena! No entanto, talvez pelo susto, a fome
havia passado. A única coisa que eu sentia ainda era aquela tristeza. Eu nunca
fui triste, mas, hoje, parecia que todas as poucas lembranças da vida estavam
me incomodando.
Deu vontade
de ir ver dona Lola, minha mãe. Mesmo sendo véspera de Natal e sabendo que era
dia de ganhar uma grana, não dava vontade de trabalhar. Fui pra casa e foi
ainda pior. Por lá estava uma tristeza só, como todo ano nesta época, minha mãe
era uma choradeira. Voltei pra rua e passei o dia vagando, sem rumo, até
anoitecer. A cidade
estava uma mistura de alegria e frustração que só quem é da rua consegue
perceber: alegria de quem tinha uma grana para presentes e festas; frustração
pra quem, mais uma vez, não tinha ganhado o suficiente.
Apesar da
minha idade, tinha alguns pensamentos sobre o Natal. Sempre achei estranho as pessoas
darem tanto valor ao que se pode comprar e, também, nunca concordei que o “dar
e receber” do Natal fosse tão material. Eu via as pessoas entrando nas igrejas
para encontrar Deus, chegando com seus carrões brilhantes e roupas impecáveis.
Será que iam mostrar isso pra Deus? Sempre me
perguntei por que as pessoas, no Natal, não saem pra rua e abraçam as outras?
Por que não fazem uma grande festa em praça pública, pra todos participarem.
Cada um daria um pouco do que tem e todos ficariam alegres. Tenho certeza de que,
se tivesse pra todos, não haveria confusão.
Tudo bem que
o sorriso de um filho com o presente novo deve ser uma grande alegria para os
pais, mas... bem, e quantos filhos que não sorriem? E quantos pais que se
entristecem por não poderem presentear? Daí reclamam da violência. O mais
simples de se fazer contra a violência, quase ninguém faz: ser amigo, dar um
abraço, compartilhar um pouco o pouco, ou o muito, ou, ao menos, o que sobra,
mas, parece mais fácil reclamar da polícia e dos políticos, do que estender a
mão e sorrir, ao contrário de se fechar em suas casas de altos muros, com
alarmes e vigias espalhados. Às vezes me pergunto: quem está se protegendo,
eles de nós, ou nós deles?
Além do mais,
o sorriso do filho não seria ainda mais bonito se fosse junto com uma criança
pobre, que quase nunca ganha um presente novo? Por que os pais não ensinam isso
aos filhos: partilhar? Alguém perde alguns minutos, olhando o brilho triste que
se acende nos olhos de quem não pode comprar, na frente das vitrines
encantadas, espalhadas pelas ruas? Lágrimas sem nome, esquecidas de quem ri. Se
eu fosse Presidente, mandava construir escolas onde se ensinasse a
compartilhar, tenho certeza que iria sobrar mais espaço nas cadeias.
A mola do
sofá do seu Lau estava incomodando mais que nos outros dias, e o cheiro de gato
estava insuportável. Fui até a escada do museu e olhei a hora na torre da
matriz: quase meia noite. Meu amigo fantasma logo deveria se apresentar. Ri do
meu pensamento e descobri que estava morrendo de medo de entrar, mas, não tinha
outro local pra dormir e os risos e cantigas de Natal, que se ouvia na cidade,
me incomodavam, como nunca.
***
Quando
cheguei perto da porta, ela abriu-se, desta vez, sem fazer barulho e meu amigo
fantasma abriu seu delicado sorriso. O coração, mais uma vez, deu um salto:
então não era sonho!
— Estávamos esperando.
— A mim?
— Sim, hoje você é o meu convidado especial.
Por momentos
tive dúvidas se aquilo estava acontecendo de verdade ou se era mais um sonho.
Quem sabe eu estivesse dormindo lá no sofá do seu Lau? Mesmo assim, sendo ou
não um sonho, por que não entrar?
O salão
principal do museu estava diferente, ainda eu podia ver as peças antigas que me
encantavam, mas ele estava maior, e muitas pessoas estavam espalhadas nele.
Todos me olhavam e sorriam, comemoravam a noite de Natal, com lindas roupas
brancas. Seria aquilo uma reunião de anjos?
— Anjos, propriamente, não – falou meu amigo
fantasma, como se estivesse lendo meus pensamentos. – Hoje podemos ser chamados
de Espíritos do Natal. Durante o ano trabalhamos para o bem, ajudamos as
pessoas que ainda lutam aqui na Terra. Todos aqui têm um elemento em comum:
morremos cedo, ainda na juventude.
Viemos para a Terra por um curto período, para que registrássemos na
memória as lutas e dificuldades do ser humano, para que, agora, no outro lado
da vida, puséssemos ajudar com mais eficiência. Na época do Natal temos um
trabalho especial. Você já ouviu falar no Espírito Natalino?
— Já, mas só de ouvir falar mesmo, na prática a
coisa tá feia.
— Pois é. Nesta época, a maioria das pessoas se
predispõem a atitudes mais nobres, de perdão, paciência, caridade...
— Ah é! Tem certeza?
— Tenho sim.
Sei que tem sido difícil pra você, mas, nesta época, aproveitamos para ajudar
as pessoas a darem grandes passos evolutivos. Situações que se arrastam por
longo tempo, muitas vezes, são resolvidas pela ajuda do Espírito Natalino. O
perdão é o vento que move a nave do destino, enquanto que a mágoa é a âncora
que a prende...
— Então vocês são Espíritos Natalinos. Pensei
que isso fosse invenção... e o que eu faço aqui entre vocês?
— Você é meu convidado, já disse. Na verdade,
eu sou o mais velho do grupo...
— Então você é o chefe aqui...
— É, pode-se
pensar assim. Através dos tempos, a morte sempre foi o grande drama humano, no
entanto, todas a vezes que passamos por ela, descobrimos que morrer é apenas
renascer. A vida continua em sua plenitude, enquanto as pessoas a desconhecem,
por isso, ajudamos a conhecê-la.
— O que você quer dizer com isso?
— Hoje você
pensou muito nas dificuldades do ser humano, foram grandes pensamentos...
— É, o Natal sempre me deixa assim...
— Veja, é meia noite, hora de comemorarmos a
vida...
Meu amigo foi
para o piano. Tocou músicas lindas e cantamos com ele por muito tempo. O dia
quase amanhecia quando todos começaram a sair. Foi uma noite linda, o melhor
Natal que eu já passei, junto com meus amigos fantasmas.
Meu amigo
chegou perto de mim e abraçou-me, com carinho. Pensei que ele estava se
despedindo, por isso fiquei ainda mais surpreso quando ele me falou:
— Quer trabalhar comigo, no meu grupo?
— Como assim? Minha vida é uma dureza, mas, eu
tenho minha alegrias...
— E quem disse que você não vai continuar
vivendo? A morte é apenas da matéria.
— Mas eu não posso me matar...
— Não precisa...
— ???
— Querido amigo, já está feito...
— Feito o quê? O que você quer dizer com isso?
— Você ainda não sabe?
Por instantes
tive a impressão que meu peito ia estourar. Não sei dizer, ao certo, o que
senti. Alegria e tristeza se misturavam com velocidade. Sorri, com o rosto
cheio de lágrimas e abracei de novo meu amigo fantasma. Fantasma! Não podia
mais chamá-lo assim.
— Então o acidente foi mais grave do que
pensei?
— É...
— Mas, eu nem percebi.
— A maioria
nem percebe quando acontece. Você é um dos nossos, veio para experimentar, na
pele, as carências humanas. Agora é hora de voltar e trabalhar, se quiser, pode
ser no meu grupo.
— É claro que quero!
— É Natal e
nós, os Espíritos Natalinos destes dias, temos muito o que fazer... como você
sabe: as crianças na frente das vitrines, os pais que não puderam comprar os
presentes, os irmãos que não se conversam, os casais que não se perdoaram, as
pessoas com seus carrões brilhantes e roupas impecáveis, os que não conseguem
se doar... é, temos muito o que fazer. Este ano você é meu assistente.
— E minha mãe?
Ele me olhou
como se eu tivesse falado besteira, depois, somente apontou o dedo pra cima,
sem fazer comentários, como se me cobrasse por não crer em Deus, mesmo com tudo
o que estava acontecendo comigo. Meu amigo
abraçou-me e fomos para fora do museu. Passei o dia de Natal próximo do coração
humano, vasculhando, lá dentro, até encontrar Deus. Muitas pessoas mais
endurecidas não conseguiam coloca-lo pra fora, outros sorriam, outros choravam,
alguns abraçavam um desafeto, outros pensavam em seus erros e se predispunham a
mudar, alguns já tinham escondido tanto Deus que nem nos ouviam. Tantos
pensavam melhor na vida e imaginavam ser possível torná-la melhor.
Era Natal, e eu estava aprendendo o que isso
realmente significava: a Natalidade eterna da vida, o renascer incessante, nos
levando muito além da morte, muito além de todos os Natais.
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foto de: denataljamoseh.blogspot.com